Multiplas Vozes 15/03/2023

CACs e a banalidade das armas no Distrito Federal

Dados preliminares do Distrito Federal sugerem correlação entre o aumento de registro de CAC e o incremento de violências domésticas ou conflitos interpessoais por parte de portadores de CACs

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

No início de 2023 dois casos de feminicídio no Distrito Federal despertaram atenção. Duas mulheres foram assassinadas com o emprego de arma de fogo por seus ex-companheiros, sendo que ambos autores possuíam registros de armas de fogo na condição de caçador, colecionador e atirador[1]. Ou seja, eles faziam parte dos conhecidos CACs. Daí provavelmente as armas dos citados crimes foram legalmente obtidas por meio das licenças para CAC, as quais se tornaram banalizadas na gestão do ex-presidente Bolsonaro. Será que esses casos de violências envolvendo CACs foram esporádicos? Ademais, a quantidade de armas adquiridas como CACs tem correlação com o aumento de episódios de violência?

Sabe-se que a quantidade de armas em circulação na categoria de CACs aumentou substancialmente. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) apontam que o número de certificado de registros de ativos de CACs saltou de 117.467 registros em 2018, para 515.523 registros em 2021; o que representa alta acumulada de 339,0%[2]. Ressalta-se que, em 2022, o Distrito Federal, juntamente com Goiás, Tocantins e cidades do Triângulo Mineiro, concentraram 12,7% dos registros de CACs; a terceira região militar do país com mais registros ativos. Particularmente nessa região, entre 2018 e 2022, a quantidade de armas registradas aumentou em cinco vezes, enquanto no nível nacional o incremento foi de três vezes[3].

 

 

A maior quantidade de armas fogo em circulação tem o potencial de gerar mais fatos conflituosos e violentos; como demonstrou o levantamento do Atlas da Violência (2019). Esse estudo indica que uma arma de fogo dentro do lar faz aumentar as mortes violentas dos moradores, seja por questões que envolvem crimes passionais e feminicídios, seja porque aumenta barbaramente as chances de suicídio, ou ainda porque aumentam as chances de acidentes fatais, inclusive envolvendo crianças[4]. Diante disso, é presumível que a quantidade de armas de fogo disponíveis como CACs tenda a aumentar os números da violência. Talvez essas armas não impactem descomedidamente na criminalidade de rua, por exemplo, em assaltos; contudo têm mais probabilidade de gerar violências no âmbito familiar e relações interpessoais.

Nesse aspecto, vale observar o exemplo do Distrito Federal. Nessa região, em 2019 foram registradas 24 ocorrências com autores na condição de CACs; por sua vez, em 2022, foram 205 ocorrências; o que equivale a alta em 754,0%. Como se verificou anteriormente, houve acréscimo na quantidade de armas de fogo com registro CACs na área do Distrito Federal e, da mesma forma, constatou-se ampliação exponencial na quantidade de ocorrências policiais com autores portadores do registro para CAC.

 

 

 

Em 2022, nas 205 ocorrências encontradas, quase totalidade dos autores era do sexo masculino; com apenas 3 casos de mulheres figurando como autoras. Ademais, cerca de 28,5% dos autores do sexo masculino tinha entre 36 e 40 anos de idade.  Trata-se, portanto, de uma população masculina jovem e de meia idade. Essa situação de predileção por armas de fogo por parte de homens jovens não é novidade, porém, ganhou status de fetiche com o ex-presidente Bolsonaro. Afinal, os discursos dele em defesa de armas de fogo, em regra embebidos por testosterona e agressividade, tornaram-se praticamente política de seu governo.

Nesse contexto do Distrito Federal, com o aumento da quantidade de fatos criminais envolvendo CACs e com a maioria dos autores sendo do sexo masculino, pode-se cogitar que os casos tendam a impactar mais nas relações cotidianas e domésticas; sobretudo atingindo mulheres como vítimas. Nesse sentido, na amostra dos crimes relatados nas 416 ocorrências de 2019 a 2022, ressaltaram-se casos relacionados à violência contra mulher; conforme a Lei Maria da Penha. Assim, em 2019 foram registrados 4 fatos de CACs em contexto de violência doméstica, já em 2022 passou para 48.

 

Especificamente em 2022, em aproximadamente 16,0% dos crimes praticados por autores como CACs as vítimas eram mulheres; considerando fatos referentes à Lei Maria da Penha, à violência psicológica contra a mulher e ao stalking.  Ademais, no geral, ressaltaram-se crimes provavelmente oriundos de relações interpessoais ou domésticas; como ameaça, injúria, lesão corporal. Em todos esses crimes se observa alta significativa dos registros entre 2019 e 2022; justamente o período de maior expansão dos registros de CAC.

Nesse panorama, dados preliminares do Distrito Federal sugerem correlação entre o aumento de registro de CAC e o incremento de violências domésticas ou conflitos interpessoais por parte de portadores de CACs. Ademais, esses dados apontam significativa disposição de vitimização de mulheres. Com efeito, os dois casos de feminicídio envolvendo autores como CACs incialmente relatados não foram dramas isolados, mas trágicas comprovações do perigo da banalização das armas de fogo por meio do CACs.

 

[1] Homem que matou companheira com tiro na testa tem registro de CAC. Metrópoles. Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/na-mira/homem-que-matou-companheira-com-tiro-na-testa-tem-registro-de-cac

[2] Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022). Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/ Homem que matou Jeane no Park Way com tiro de espingarda era CAC. Metrópole. Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/homem-que-matou-jeane-no-park-way-com-tiro-de-espingarda-era-cac

[3] Número de armas registradas por CACs cresce quase cinco vezes no DF e estados próximos. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/09/05/numero-de-armas-registradas-por-cacs-cresce-quase-cinco-vezes-no-df-e-estados-proximos.ghtml

[4] Atlas da Violência (2019). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019

 

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