Múltiplas Vozes 09/07/2025

Assédio nas polícias brasileiras: o impacto do silenciamento

Transformar a cultura institucional das polícias exige escuta ativa, proteção às vítimas e responsabilização efetiva dos agressores. Cuidar de quem cuida de nós é dever inadiável

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Kerlly Santos

Policial Civil, pesquisadora e associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A violência institucional, embora silenciosa, tem ganhado espaço nas discussões acadêmicas. Infelizmente, o ambiente policial, por sua estrutura, é terreno fértil para sua manifestação (Camargo).

Uma das formas pelas quais ela se manifesta é o assédio, que pode ser dividido em dois: sexual e moral. O assédio sexual (explorado por Ferreira) encontra previsão legal no art. 216-A do Código Penal, e trata das situações em que superior hierárquico se vale de sua condição para obter favores de cunho sexual de pessoa sob seu comando. Há divergência doutrinária quanto à hierarquia: embora frequentemente praticado por superiores (como discutem Santos e Azevedo), também pode ocorrer entre pares – o chamado assédio horizontal (Rigotti e Ferrari).

Já o assédio moral, embora não tipificado penalmente, tem gerado condenações cíveis com base na Constituição Federal e no Código Civil.

Hirigoyen, pesquisadora francesa dedicada ao tema, destaca o potencial danoso dessa conduta e a conceitua assim:

Por assédio em um local de trabalho temos que entender toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho. (2024, p. 65)

As instituições policiais combatem a violência do lado de fora, mas frequentemente falham em reconhecê-la internamente. Em ambientes marcados por forte hierarquia, dinâmicas de poder e abuso se naturalizam, favorecendo práticas recorrentes de violência institucional. Segundo Silva Júnior e Alves e França, isto ocorre pela dificuldade em distinguir legalidade de abuso, e da naturalização da violência simbólica. Esse cenário acaba sendo potencializado pela ineficácia dos mecanismos de controle, bem como pela inexistência de meios que visem à proteção da pessoa que se descobre vítima de assédio.

Como aponta Conceição, mulheres são as mais expostas a episódios de abuso dentro dessa dinâmica autoritária e machista, o que dialoga com a pesquisa Visível e Invisível, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nela, cerca de 20% das mulheres que relataram ter sofrido episódios de assédio informaram que ele ocorreu dentro do contexto trabalhista. Embora o dado se refira ao ambiente profissional em geral, é de se esperar que, no contexto policial – marcado por hierarquia rígida e masculinização – o problema seja ainda mais grave, já que o poder pode ser exercido de forma mais opressiva.

No presente texto, o objetivo é apresentar resultados e conclusões obtidos em pesquisa realizada anonimamente, na qual foram ouvidas de forma voluntária 64 pessoas vítimas de assédio dentro das instituições policiais. Embora o número de respondentes possa parecer reduzido, é significativo diante do tabu e da subnotificação sobre o tema (Muniz).

A metodologia empregada foi a coleta de dados através de formulário, contendo 22 perguntas, priorizando questões fechadas, com o fim de evitar qualquer informação que pudesse vir a identificar as pessoas ouvidas, e a análise dos dados foi quantitativa e qualitativa.

O objetivo da pesquisa foi compreender as experiências de assédio no contexto da segurança pública, além de procurar entender os fatores institucionais que contribuem para esse cenário, justificado a partir da necessidade de romper o silêncio imposto às vítimas e visando ao impulsionamento do debate e à mudança institucional nas polícias.

O quadro abaixo traz um breve resumo dos resultados obtidos:

Percebe-se que quase todos os casos relatados envolviam cargos de base, como investigadoras, escrivãs, agentes, mas também houve pessoas que ocupavam posição de chefia em suas instituições. O estudo abarcou um total de 17 estados e várias instituições, demonstrando a diversidade dos dados.

O padrão mais recorrente foi o assédio moral, relatado por 59 participantes. Dentre as 21 vítimas de assédio sexual, 16 também relataram assédio moral – o que sugere que ele seja empregado como uma forma de silenciamento ou retaliação após a investida sexual.

Outro ponto interessante é o fato de que 59 pessoas apontaram que colegas sabiam ou presenciaram os fatos, mas poucos (apenas 21) se posicionaram no sentido de defender ou apoiar a vítima, o que corrobora a percepção da existência de uma cultura de silêncio.

Em 51 relatos, os abusos não se limitaram a um único episódio: ocorriam de forma esporádica ou com frequência, revelando um padrão de continuidade. Apenas 11 vítimas afirmaram ter passado por caso isolado – o que robustece a ideia de que o assédio, muitas vezes, se perpetua ao longo do tempo (Lopes e Rigotti e Ferrari).

Das pessoas respondentes, menos de ⅓ efetuou denúncia formal. Esse é o resultado de uma falta de resposta institucional adequada, indicando a ausência de segurança institucional para a denúncia.

Aquelas que deixam de falar apontam o medo de retaliação como causa, e sentem não haver canal adequado, além de recearem que ir a público só haveria de piorar a situação (Dal Bosco).

Para quem denuncia, as consequências são devastadoras. Entre essas pessoas, 75% relataram ter sofrido retaliação, e quase ninguém disse ter encontrado apoio da instituição, que virou as costas para quem precisava de ajuda. As vítimas acabaram se tornando alvo de procedimentos (investigações, inquéritos, procedimentos administrativos), o que explicita a inversão da culpa e uma falha no sistema que deveria proteger a vítima, e não revitimizá-la.

Outro dado relevante diz respeito às condenações: a impunidade parece ser a regra. Em minha pesquisa, apenas cinco agressores foram punidos.

Embora a lei e a jurisprudência entendam que a palavra da vítima deva ter valor diferenciado em casos como esses, o que se percebe na prática é que, ao falar, a vítima acaba por vezes sendo descredibilizada, especialmente em situações em que é difícil comprovar o que se diz (Martins). E o autor geralmente não é responsabilizado – ou é aposentado sem quaisquer consequências.

O impacto na vida das vítimas parece ser brutal, pois afeta múltiplos aspectos. No âmbito do trabalho, impede que a vítima se desenvolva plenamente em sua carreira, além de levar muitas dessas pessoas a pedir afastamento ou até mesmo considerar abandonar a instituição (Rigotti e Ferrari). Além disso, o sofrimento psíquico (Lopes) faz com que muitas busquem apoio fora da polícia – como acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico.

Esse impacto não se limita à vida pessoal ou profissional: transborda para as relações cotidianas. O estresse constante da função, agravado pelo assédio, afeta a forma como o policial trata seus familiares, colegas e o público. No fim, toda a sociedade sente as consequências.

É possível afirmar que o assédio é uma realidade estrutural, com consequências sérias para a saúde, a carreira e a vida das vítimas – e traz impactos para toda a sociedade.

Se a estrutura que, em tese, serve para proteger é vista pelos próprios membros como facilitadora ou capaz de acobertar abusos, que tipo de mudança cultural seria necessária para recuperar a confiança? É urgente repensar sua estrutura e o funcionamento.

Transformar a cultura institucional das polícias exige escuta ativa, proteção às vítimas e responsabilização efetiva dos agressores. Cuidar de quem cuida de nós é um dever inadiável.

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