A cor da questão 06/08/2025

As prisões de Chicos e as de Franciscos

O que haveria em comum nas decisões judiciais, em que, de um lado, há a recusa expressa a se revogar a prisão de um acusado por furto de um chocolate e, de outro, a escolha por não decretar a prisão preventiva imediatamente, inovando, inclusive, nas hipóteses cabíveis para a prisão domiciliar?

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Estamos quase a completar dois séculos da instauração dos cursos jurídicos no Brasil. Foi no já longínquo 11 de agosto de 1827 que Dom Pedro I, “pela graça de Deos e unânime aclamação dos povos” mandou criar, com suporte na lei, os mais antigos cursos de ciências jurídicas e sociais – em São Paulo e em Olinda. Entre outras intenções, a pretensão era a de promover estudos sobre o direito pátrio.

Se tomarmos a primeira Constituição promulgada, após termos faculdades de Direito em território nacional, chegaremos à Carta de 1891. Em um país recém-saído da abolição formal da escravatura, o princípio da igualdade ali previsto, embora estabelecesse a conhecida e agora longeva formulação “todos são iguais perante a lei”, rechaçando privilégios de nascimento, foros de nobreza e extinguindo ordens honoríficas existentes, bem como as prerrogativas e regalias a elas vinculadas, ainda continha limitações significativas quanto à igualdade material.

“Mendigos”, “analfabetos” e mulheres não podiam exercer o direito ao voto, o que, na prática, implicava colocar boa parte da sociedade à parte da participação política reconhecida pelo Estado.

Não são poucos os diplomas normativos que declaram a igualdade de todos perante a lei. Nos documentos em vigor, podemos localizar na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, 40 anos depois, também na Constituição Brasileira de 1988, a afirmação da isonomia como princípio central nos Estados de Direito.

Por ser um princípio fundante e trazer reverberações que transcendem a dogmática constitucional, a igualdade ecoa também quando o assunto são as regras penais. Na formação dos operadores do direito é, portanto, incontornável o debate sobre o alcance da isonomia jurídica. Por isso, parece muito válido e pertinente refletirmos acerca de casos concretos, que desafiam os contornos doutrinários e jurisprudenciais.

Nessa linha, o que haveria em comum nas decisões judiciais, em que, de um lado, há a recusa expressa a se revogar a prisão de um acusado por furto de um chocolate e, de outro, a escolha por não decretar a prisão preventiva imediatamente, inovando, inclusive, nas hipóteses cabíveis para a prisão domiciliar?

Ambos são casos reais, do ano de 2025, no Brasil, que supera 900 mil pessoas privadas de liberdade, de acordo com o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A população carcerária é composta majoritariamente por homens (94%) e por negros (68,7%). E é nesse quadro que vemos, a olhos nus, a eficiência da seletividade penal, uma das facetas concretas do racismo.

Nos manuais de direito, não há espaço para a escolha, frente à subsunção do fato à norma. A escolha pela opção mais conveniente é marca da política, não do jurídico. Aplicar a legislação é justamente buscar, usando as lentes jurídicas, a correspondência com a realidade. Do contrário, temos a perpetuação de privilégios. Além disso, aquela suspeita incômoda de que “a lei não vale para todos” prospera, esvaziando todo e qualquer esforço de fazer valer a igualdade.

Não se trata de uma coincidência que apenas parcela específica da população brasileira seja sempre a que suporta uma resposta penal implacável. É inimaginável que qualquer outra pessoa criminalmente acusada possa ter espaço processual, dentro dos contornos previstos na legislação em vigor, para se “acostumar” com a pena imposta. A construção jurisprudencial será revisitada e terá muito a ganhar se, a partir desse precedente, outros réus igualmente puderem ter acesso à mesma interpretação judicial que, verdadeiramente, considera a prisão como o último recurso.

Chicos e Franciscos aqui tiveram os nomes preservados para promoção de debates que permitam colocar em questão as intenções do legislador e as dos intérpretes do direito. E, também para não termos dúvida de que os nossos quase duzentos anos de tradição jurídica nacional ainda não consolidaram a igualdade perante a lei.

 

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