As polícias estaduais ante conflitos típicos da Amazônia
No Javari, o luminol sobre o sangue que manchou o chão ancestral da aldeia e escorreu no remanso do igarapé desvela o caos territorial, a violência crua e o abandono histórico que assola povos indígenas, ribeirinhos, meio ambiente, patrimônio e soberania nacional
Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto
Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, alcança grande repercussão. Organizações não-governamentais e a mídia nacional e internacional acompanham de perto a investigação policial, com a prisão dos suspeitos e a busca por outros envolvidos e supostos mandantes, para a elucidação da motivação e das circunstâncias do crime. Enfatizam, de maneira especial, a debilidade das políticas indigenista e ambientalista no Brasil.
A violência que assola regiões da Amazônia profunda, em geral, não alcança tamanha repercussão. Nesse vale, há quase cinco anos, dezenas de indígenas foram chacinados. Em 2019, outro colaborador da Fundação Nacional do Índio (Funai), que fazia o mesmo trabalho que Bruno, foi executado a tiros na rua mais movimentada de Tabatinga/AM, na tríplice fronteira. Sem igual alarde, os crimes jazem não esclarecidos.
Aiala Couto, Betina Barros e David Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), explanam que a região do Vale do Javari registra o crescimento de 9,2% na violência letal entre 2018 e 2020, decorrente da disputa entre facções criminosas somada aos crimes ambientais.
Para os geógrafos (e ex-servidores da Funai) Marco Targino e Sandoval Amparo, que estudaram os índios Korubo que habitam a Terra Indígena Vale do Javari, o desmonte das políticas ambiental e indigenista iniciados em 2019, associado aos estímulos oferecidos pelo governo de Jair Bolsonaro à invasão e espoliação das Terras Indígenas (TI), fomenta a crescente violência verificada em praticamente toda a Amazônica brasileira.
Além da caça e da pesca irregular, a Terra Indígena do Vale do Javari é alvo permanente de garimpeiros, madeireiros e rota do tráfico internacional de drogas ilícitas. Um rol de conflitos típicos da Amazônia que se agrava sob pressão de medidas anti-indígenas e anti-indigenistas adotadas pela atual gestão da Funai, conforme denunciam os próprios indígenas, e de projetos de lei que visam autorizar atividades de mineração e a construção de hidrelétricas nas TI, e que propõem alterações de demarcação dos territórios, o chamado “Marco Temporal”.
Para Aiala, Betina e David, a Amazônia brasileira sofre as consequências de um projeto de segurança pública que se nega a atuar no enfrentamento à criminalidade ambiental e, com isso, fortalece o narcotráfico.
Ante a precarização da atuação federal no enfrentamento à criminalidade ambiental, o que cabe às polícias estaduais na oferta de segurança pública nos rincões da Amazônia desassistida? Mais exatamente, quais as dificuldades das policiais militares de atuar no gerenciamento dos conflitos típicos da região?
Assumindo que as polícias militares terão papel a desempenhar no novo paradigma de ação estratégica de enfrentamento à proliferação de modalidades e atores criminais que assolam a região amazônica, cogito que as dificuldades das policiais militares parecem se assentar essencialmente em dois fatores limitadores da ação das forças estaduais.
O primeiro e principal fator limitante decorre da crendice jurídica de que todo crime que envolva indígenas ou que é praticado em TI são de atribuição da Polícia Federal. Analisando o tema, Henrique Oliveira Santos, delegado da Polícia Federal do Núcleo de Repressão aos Trabalhos Forçados/ Brasília (e ex-capitão da Polícia Militar de Minas Gerais), nota que é preciso desmitificar o assunto e explica que as polícias militares têm competência, por meio do patrulhamento ostensivo, bem como para reprimir crimes comuns promovidos por particulares indígenas e não-indígenas, posto que não há vedação constitucional à atuação desses órgãos.
O delegado complementa que, em relação à atribuição para investigação de crimes envolvendo indígenas, é necessário destacar dois pontos. Se o crime for contra as TI, caberá à Polícia Federal a sua investigação. Mas, sendo qualquer outro crime praticado por ou contra indígena, deve-se verificar se a conduta envolve a disputa de direitos indígenas. Se positivo, caberá à Polícia Federal; caso contrário, quando o crime não envolver a coletividade indígena, será de atribuição das polícias estaduais.
A despeito da disposição dos Governos dos Estados da Amazônia legal em eventualmente colaborar com os órgãos da União – a atuação das forças da segurança pública do Amazonas no esforço conjunto de elucidação do assassínio de Bruno e Dom serve de exemplo –, o que se verifica é o descompromisso das polícias estaduais com o enfrentamento permanente a certa categoria de conflitos tidos equivocadamente desde sempre – ou melhor, desde quando as polícias militares receberam a nova atribuição do policiamento ostensivo (1969) – como sendo de competência exclusiva da União.
O segundo fator limitante da atuação das polícias militares consiste justamente nesse despreparo para lidar com a realidade vivenciada no Vale do Javari, que sofre com o atual projeto político de desregulação ambiental e ataque aos direitos indígenas e, na esteira desse achaque, com a presença das facções criminosas e da sua influência sobre comunidades tradicionais extremamente vulneráveis e, portanto, facilmente sujeitadas à cooptação e vitimização.
Nesse sentido, geógrafos, ambientalistas, indigenistas, antropólogos, sociólogos etc., pesquisadores do tema, têm muito a colaborar com a especialização das forças estaduais, necessária à compreensão da complexidade que envolve o estabelecimento de um novo paradigma de segurança pública para a Amazônia brasileira, que inclua como cidadãos merecedores de proteção indígenas e ribeirinhos até então marginalizados.
Contudo, é sabido que segurança pública não é só questão de polícia. Se a oferta de segurança como direito fundamental se faz essencial ao desenvolvimento socioeconômico com a floresta em pé, em contrapartida, até o presente, não se proporcionou para a Amazônia brasileira um sistema ecologicamente sustentável e economicamente capaz de gerar e distribuir riqueza que reverta a vulnerabilidade da sua população cabocla.
Na contramão, o que se vivenciou na Amazônia foram processos de produção e acumulação do capital e práticas de degradação humana e de espoliação da natureza que foram incorporados à territorialidade e à vida na floresta, mantidos no limbo entre o moderno e o tradicional e entre o legal e o ilegal.
As frentes pioneiras de extração da borracha e caucho – que prevaleceram até o início do século XX – se distenderam na economia da troca de mercadorias ilícitas na tríplice fronteira, que ameaça principalmente as TI: garimpo, desmatamento, pesca e caça irregular, biopirataria, tráfico de drogas e armas.
Já as frentes de expansão – os “grandes projetos” aprofundados na região a partir dos anos 1960, notadamente ao longo dos governos militares – remetem ao grande capital, ao extrativismo mineral, à concessão de áreas para empresas petrolíferas, ao projeto político de desregulação ambiental e ataque aos direitos indígenas.
O Governo federal, neoliberal, reedita o discurso militar de integração nacional e segue insensível à vulnerabilidade da Amazônia e dos amazônidas, sem projeto ambiental viável; muito ao contrário, incentivando a sanha predatória.
Resta claro, ao final, que, para além do suor das forças de segurança, o enfrentamento efetivo à criminalidade ambiental implica na percepção de que o fermento da violência na Amazônia é a vulnerabilidade da sua população desassistida. O abandono histórico ecoa o chamado de Chico Mendes: “Ecologia sem luta de classes sociais é jardinagem!”. Segurança pública na Amazônia sem a oferta de dignidade às populações indígenas e ribeirinhas é miragem.