Tema da Semana

O desaparecimento de Dom e Bruno e o ponto de não retorno para a Amazônia

A demora ou descaso das instituições em tomar providências protetivas a Bruno e aos indígenas da região não é uma fatalidade. É sintoma de um projeto de segurança pública que se nega a atuar no enfrentamento à criminalidade ambiental e, consequentemente, fortalece o narcotráfico que tanto afirma querer combater

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David Marques

Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Doutor em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Aiala Colares de Oliveira Couto

Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Possui especialização em Planejamento Urbano pelo Curso de Formação Internacional de Pós Graduados em Áreas Amazônicas (FIPAM). Mestre em Planejamento do desenvolvimento pelo Núcleo de Altos estudos Amazônicos (NAEA). Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Únido (PPFDSTU-NAEA-UFPA). Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Betina Barros

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Philips desapareceram no dia 5 de junho na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, nas proximidades do município de Atalaia do Norte, no Amazonas. Os trabalhos de busca e investigação encontraram evidências que sugerem o cometimento de algum tipo de crime violento contra os dois. A região e o contexto no qual se deu o desaparecimento são representativos de um fenômeno para o qual a opinião pública brasileira tem sido alertada mais recentemente: a sobreposição entre crimes ambientais e outras modalidades criminosas violentas, incluindo a atuação de organizações criminosas.

A Terra Indígena, com mais de 8.500 mil hectares de extensão e responsável por abrigar 26 povos isolados, está localizada no oeste do estado brasileiro, fazendo fronteira com o Peru e com a Colômbia. Essa localização estratégica na tríplice fronteira faz com que a região seja mais visada por grupos criminais, seja por conta do narcotráfico ou por suas riquezas naturais, cada vez mais ameaçadas por garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais.

Ao observar o fenômeno do narcotráfico na região, é possível identificar que nas áreas de fronteira são estabelecidas conexões e simbioses entre diferentes tipos de crimes, com a formação de redes transnacionais. Nelas, as facções têm se consolidado enquanto modelos organizacionais que respondem à necessidade de fluidez no mercado das drogas e de outras mercadorias ilícitas. As organizações criminosas oriundas do Sudeste, isto é, o Comando Vermelho (Rio de Janeiro) e o Primeiro Comando Capital (São Paulo), direcionaram seus interesses para a Amazônia, e têm disputado o controle das principais rotas do tráfico de drogas na região. Além disso, há as facções locais e regionais que entendem perfeitamente o quanto é valioso ter o controle das rotas da droga, bem como, aproveitar os ativos ambientais como possibilidade de formação de capital e lucro. Como exemplo, os estados do Amazonas e do Pará viram o surgimento de facções como Família do Norte e Comando Classe A. Mais recentemente, em Manaus, surge o Cartel do Norte e, no Vale do Javari, “Os Crias”. Esta última em uma região estratégica para o tráfico de drogas e contrabando.

Hoje, a Amazônia enfrenta problemas graves com a presença das facções, que vêm se multiplicando, fazendo alianças, influenciando comunidades tradicionais, como indígenas e ribeirinhos, criando climas socialmente instáveis nas cidades da região, contribuindo para a elevação dos dados de violência e se conectando às outras atividades ilícitas, relacionadas a crimes ambientais, como a exploração ilegal de madeira e os garimpos clandestinos, que frequentemente se valem da invasão de terras indígenas e outras áreas de preservação especial, e a biopirataria de espécies animais e vegetais que possuem interesse valioso no mercado internacional.

A produção de dados quantitativos que evidenciem a atuação dessas redes ainda é um desafio para os sistemas de informação de segurança pública atualmente disponíveis. Ainda assim, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Instituto Clima e Sociedade e Grupo TERRA, da Universidade Estadual do Pará, sistematizou indicadores que podem funcionar como proxy para a compreensão do fenômeno. Na publicação Cartografias das Violências na Região Amazônica, foram realizados cruzamentos entre os dados de Mortes Violentas Intencionais (MVI) e dois tipos de classificação: a tipologia utilizada pelo IBGE para diferenciar espaços urbanos e rurais e a segmentação utilizada pelo Imazon para classificar áreas com base na ocorrência de desmatamento.

Em relação aos tipos de municípios segundo a classificação do IBGE, o estudo calculou as taxas de mortes violentas nos municípios urbanos, intermediários e rurais no ano de 2020. O resultado apontou que, na comparação com as taxas dos municípios do restante do país no mesmo ano, a Amazônia Legal superou a média nacional em todas as segmentações. A maior taxa na região foi identificada nos municípios intermediários adjacentes, onde houve crescimento de 15,1% dos casos entre 2018 e 2020. Em contrapartida, na mesma segmentação nos municípios de todo o país, notou-se queda de 8,5% taxa dos óbitos. Em relação a taxa de mortes violentas nos municípios rurais adjacente e rurais remotos, também houve crescimento no mesmo período, respectivamente de 7,2% e 13,3%.

Na média geral, portanto, observou-se uma taxa de mortes violentas intencionais na Amazônia Legal 40,8% superior à taxa verificada nos demais municípios brasileiros. A comparação das taxas de mortes violentas intencionais para os anos de 2018 e 2020, portanto, indica que, com a redução da violência letal verificada nos municípios urbanos (-25,7%), os municípios considerados intermediários adjacentes concentraram, em 2020, os maiores índices de mortalidade violenta. Soma-se a este cenário a elevada taxa de mortes violentas nos territórios rurais e intermediário remoto, que quase se igualam com aquela verificada nas áreas urbanas.

Já no que diz respeito ao critério do desmatamento, o cruzamento dos dados de MVI com as categorias de zona de ocupação do Imazon evidenciou que são justamente nas zonas sob pressão de desmatamento as localidades nas quais mais ocorrem homicídios e demais casos de violência letal na Amazônia Legal. As áreas sob pressão são aquelas localizadas nas novas fronteiras de desmatamento e ocupação da Amazônia. Ou seja, são os espaços de maior risco de desmatamento atualmente.

Em 2020, a maior proporção de mortes na região ocorreu nas zonas desmatadas (36% do total) e não florestais (33%). Ainda que as zonas sob pressão e florestais respondam pelas menores frações da letalidade, nos dois casos houve crescimento do percentual do total de MVI’s entre 2018 e 2020. Além disso, quando se compara a taxa de MVI por 100 mil habitantes por zona de ocupação, vê-se que os maiores valores estão justamente nas zonas sob pressão (37,1) e desmatada (34,6). Conforme se concluiu no relatório, ao avançar para as áreas sob pressão e florestal, o desmatamento leva consigo o aumento da violência para esses espaços.

Os dados consolidados na publicação parecem indicar que o desaparecimento de Bruno e Dom, dois ativistas na luta pela preservação da floresta e pela garantia de direitos dos povos indígenas, não são casos de violência isolados ou excepcionais. Mesmo nas regiões mais afastadas, os índices de violência vêm crescendo nos últimos anos no país. Em momentos como esse, também fica exposta para os olhos do Brasil e do mundo, por um lado, a ausência de vontade política para se pensar mecanismos de melhoria deste cenário, e, por outro, a falta de preparo das forças de segurança para lidar com o tema.

Vale lembrar que as notícias veiculadas nos últimos dias deram conta que a Polícia Federal e o Exército demoraram para mobilizar seus efetivos e recursos, como aeronaves e barcos. No início das buscas, também houve resistências para integrar os representantes dos povos indígenas do Vale do Javari no auxílio às buscas. Além disso, a própria distância da região e as dificuldades de acesso – a começar pelo fato de que para chegar em Atalaia do Norte os policiais enviados pela Secretaria de Segurança Pública tiveram que navegar mais de 1.000 km pelos rios, saindo da capital Manaus –impõem uma urgente reorientação das capacidades institucionais das forças de segurança para lidar com esse tipo de situação.

Um novo paradigma de ação estratégica das forças se faz necessário não apenas após casos como este, mas de forma preventiva. Conforme apurado, o indigenista Bruno Pereira, havia denunciado, em abril deste ano, por invasão de terra indígena e pesca ilegal o principal suspeito das mortes, Amarildo da Costa de Oliveira, o pescador conhecido como “Pelado”. A denúncia foi encaminhada à Funai, ao Ministério Público Federal e à Força Nacional de Segurança Pública em Tabatinga/AM. O relato dava conta que “Pelado” estava pescando ilegalmente no interior da TI, além de ser apontado como autor de diversos atentados com arma de fogo contra a Base de Proteção da Funai entre 2018 e 2019.

Infelizmente, a demora ou descaso das instituições em tomar providências protetivas a Bruno e aos indígenas da região não é uma fatalidade. É sintoma de um projeto de segurança pública que se nega, seja por despreparo, ausência de vontade política ou projeto ideológico, a atuar no enfrentamento à criminalidade ambiental e, consequentemente, fortalece o narcotráfico que tanto afirma querer combater.

A proliferação de modalidades e atores criminais que têm se sobreposto e se articulado no território amazônico num contexto de políticas estatais de controle extremamente fragilizadas estão empurrando a região para um ponto de não retorno, a partir do qual será extremamente difícil a construção de um cenário no qual a garantia de direitos, incluindo a segurança como direito fundamental, seja fundamento para o desenvolvimento socioeconômico com a floresta em pé, tão almejado para as populações da Amazônia brasileira.

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