Anistias, saidinhas, conveniências e afins
Para que a justiça não seja vingança, precisamos reivindicar outras formas melhores de lidar com a igualdade de direitos. Daí refletirmos sobre os lugares que o direito penal ocupa e pode ocupar não pode ser algo guiado por interesses momentâneos, que se deslocam para reacomodar interesses específicos em disputa.
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Faz pouco que a lei 14.843/24, modificando a Lei de Execução Penal, restringiu o benefício da saída temporária. Afinal, é inconcebível que condenados em cumprimento de pena possam visitar suas famílias, não é mesmo? A resposta é: depende. E as variáveis são, de um lado, quem pleiteia o benefício e, de outro, quem tem a incumbência de regulá-lo.
Não fosse o veto presidencial, o famigerado PL das saidinhas teria posto fim à saída temporária. Para os que têm memória curta, recordar é necessário: o mesmo Eduardo Bolsonaro que hoje cobra anistia para o caso de Jair Bolsonaro, foi o que ontem votou pela extinção desse benefício processual.
Mais do que incoerência, temos aí a evidente manifestação de uma leitura de mundo, que tem encontrado ressonância na sociedade brasileira, na qual há cidadãos que merecem tratamento digno e outros nem tanto, quando o assunto é prisão. Nessa linha, no caso em questão, embora recente pesquisa do Datafolha tenha apurado que 54% dos brasileiros rejeitam a ideia de o Congresso Nacional aprovar o perdão à Bolsonaro, chama atenção que ainda temos 39% que defendam a anistia.
Vem de longe nossa capacidade de indignação seletiva. Nesse setembro, a Lei dos Sexagenários completa 140 anos. Debatida exaustivamente no Legislativo Federal, essa norma concedeu liberdade aos negros escravizados, com idade igual ou superior a 60 anos. Contudo, a submissão a péssimas condições de vida e a trabalhos desumanos, eram obstáculos reais que se colocavam e poucos escravizados conseguiam superar a marca dos 60 anos.
Temos aí mais um escárnio materializado numa legislação que se prestou a refrear o movimento abolicionista no Brasil, a despeito da violência da escravização. No entanto, pouco falamos dessas estruturas racistas. E é inegável, como nos ensina Angela Davis, que o racismo estrutura o sistema prisional. Por isso, repensar esse sistema passa, necessariamente, por encarar de frente como a raça opera no controle punitivo brasileiro.
Assim, vermos prosperar a conveniência de um Direito Penal flex, ora mais rigoroso, ora mais brando, que em tudo vulnerabiliza a população encarcerada brasileira – e aqui vale mais uma lembrança – que é majoritariamente negra, apenas reforça a resistência para um debate mais responsável sobre o nosso sistema prisional. A recusa consistente em pautar as indignidades do cenário de encarceramento em massa que vivemos apenas dá espaço para sua retroalimentação.
Para que a justiça não seja vingança, precisamos reivindicar outras formas melhores de lidar com a igualdade de direitos. Daí refletirmos sobre os lugares que o direito penal ocupa e pode ocupar não pode ser algo guiado por interesses momentâneos, que se deslocam para reacomodar interesses específicos em disputa. Não há espaço para anistia frente a atentados contra a ordem democrática. Verdade, memória e responsabilização são fundamentais para fazer valer nosso compromisso com o Estado Democrático de Direito.