A megaoperação na Faria Lima e as medidas “de fora” da gestão da segurança pública como ferramentas para combater a criminalidade
Ainda há políticos falando em aumento de pena e de rigor no sistema prisional como solução. Pensar nos autores, e não no crime, dá nisso
Lívio José Lima-e-Rocha
Investigador de Polícia e Professor de Gestão Pública na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre (FGV) e doutorando (UFABC) em políticas públicas. Pesquisador do grupo de pesquisa Segurança Pública e Cidadania (Mackenzie). Associado sênior e conselheiro fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O ano era 2013. Uma investigação resultou na prisão de quatro fiscais da Prefeitura de São Paulo que usavam as falhas nos expedientes de emissão de autorizações a fim de exigir valores para acelerar esses expedientes ou emitir tais autorizações sem os devidos requisitos. Após a prisão, a gestão municipal alterou os procedimentos que envolviam essa autorização, que se tornou muito mais automatizada, com acesso livre para os órgãos de auditoria municipal fiscalizarem os expedientes em andamento quando assim o desejassem.
Ao analisar a queda expressiva do furto e roubo de celulares em Londres entre 2013 e 2014, de mais de 20%, a organização da sociedade civil Behavioural Insights Team, relatou que uma das medidas mais efetivas foi a instalação de placas de aviso, pela própria polícia local, nas entradas e saídas do metrô, um hotspot de furtos e roubos de celulares.
Estamos em 2025 e tivemos uma das maiores operações, se não a maior, contra a facção criminosa conhecida como PCC. Uma junção de três operações (Carbono Oculto, Quasar e Tank) atacou uma cadeia de procedimentos envolvendo a lavagem de dinheiro por atividades ilícitas envolvendo desde adulteração de combustíveis, passando pela legalização de empresas criadas para facilitar a lavagem até chegar à constituição de fintechs sediadas no centro financeiro de São Paulo, a região conhecida como Faria Lima. Quase todos os escritórios estão na avenida que tem esse nome. Para quem não conhece, é comum usarmos o termo “Faria Lima” como uma entidade que é sinônimo de mercado financeiro. É frequente no noticiário econômico a referência sobre a opinião da “Faria Lima” a respeito de questões econômicas.
Como nos casos citados no começo, no dia seguinte à megaoperação na Faria Lima a Receita Federal publicou nova regulamentação para as fintechs: elas passarão a seguir os mesmos critérios, mais rigorosos, de fiscalização das suas atividades, aos quais os bancos tradicionais já estão submetidos.
Todos esses casos, entre outros, trazem-nos a reflexão sobre como, infelizmente, sempre que falamos em políticas de segurança pública, a maioria dos atores, sem distinção, repete incansavelmente a mesma linha do bingo: mais armas, mais policiais, mais viaturas, mais tiros (dependendo da região de atuação, modalidade criminal e recorte racial dos envolvidos), mais encarceramento, penas maiores … ou seja, medidas que envolvam compras, contratações e alterações pontuais da legislação, sem compromisso com a efetividade dessas alterações. E onde estão as medidas, como as citadas em caso, que não envolvem essas compras, contratações e alterações legislativas?
A rota de fuga simplória do debate seria simplesmente colocar a culpa nas organizações policiais: se a polícia metropolitana de Londres teve a iniciativa de colocar cartazes nos pontos de incidência de furtos e roubos de celulares, por que as polícias brasileiras não tomam medidas parecidas? Não, não vamos adotar essa rota. Seria exigir uma proatividade das organizações policiais que não é ensinada, estimulada ou financiada.
A questão principal é sobre como, no nível político da gestão pública, deveríamos exigir, enquanto sociedade, a adoção de mais medidas “de fora” da segurança pública, na segurança pública. Para tanto, precisaríamos rever diversos tabus nas discussões de políticas de segurança pública. Vejamos alguns deles, só para ilustrarmos essa tese.
Inicialmente, nossos agentes políticos (incluindo o Poder Judiciário, não só o Executivo e o Legislativo) precisam parar de enxergar o crime como fenômeno isolado. Enquanto essa visão for mantida, as políticas de segurança públicas serão focadas em atacar os autores dos crimes, não o crime em si. Mesmo que seja necessário, não deveria ser decisivo no combate ao tráfico de drogas os policiais trocarem tiros com criminosos que estão vendendo drogas não produzidas no Brasil e usando armamentos não fabricados no país. A megaoperação atacou umas das fontes do dinheiro que compram esse produtos. Ainda assim, temos políticos falando em aumento de pena e de rigor no sistema prisional como solução. Pensar nos autores, e não no crime, dá nisso.
O segundo ponto é a cooperação interagências. Pensando o conceito de agência como todos os órgãos públicos envolvidos, é impressionante como temos resultados melhores quando as agências cooperam, compartilham as informações, trabalham em conjunto. Temos projetos de lei estimulando mais cooperações? Essas cooperações são estimuladas pelos agentes políticos? Sabemos a resposta: as vaidades, egos e propagandas políticas dos envolvidos priorizam a autovalorização, não o elogio à cooperação. Isso ficou notório em algumas das coletivas de imprensa dos agentes políticos após a megaoperação: a concorrência político-partidária falou mais alto do que o interesse da sociedade na melhora da segurança pública.
Precisamos da (re)visão de cooperação entre as agências, especialmente as organizações policiais. E não estamos falando de uma cooperação por canetada: falamos de uma gestão pública na qual a cooperação seja um dos pilares das políticas de segurança públicas, como determina o SUSP[1], afinal, nenhum órgão público é uma ilha [2][3].
Pensar em políticas públicas de segurança fora de alterações do sistema jurídico criminal e das organizações policiais exige uma revisão do ciclo completo dos atores e agências envolvidos. Servidores do Judiciário, Ministério Público, órgãos de fiscalização e controle e organizações policiais precisam aprender a pensar nessas possibilidades além da própria ilha desde o ingresso. Os dirigentes desses órgãos devem ser cobrados por proatividade em medidas que envolvam ir além da atividade-fim do próprio órgão. Os atores políticos precisam incorporar esse pensamento horizontalizado na segurança pública no discurso e na ação.
Temos os momentos em que confrontos e investigações são necessários na segurança pública. Mas não teremos uma segurança pública melhor enquanto pensarmos somente nessas opções como solução.