Múltiplas Vozes 06/11/2025

A lógica da guerra: a operação no Complexo do Alemão e os impasses da segurança pública no Brasil

O enfrentamento ao crime organizado não pode se dar à custa do devido processo legal, nem pode relativizar direitos e garantias fundamentais, como pregam os defensores do modelo Bukele, que se baseia no encarceramento em massa e na suspensão de direitos

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do InCT-INEAC

Sérgio Adorno

Professor Sênior da FFLCH USP

A história da segurança pública brasileira é a história da persistência da violência estatal contra os mais vulneráveis. Desde os jagunços e volantes do sertão até os caveirões do Rio de Janeiro, as forças de repressão sempre desempenharam papel central na contenção da pobreza e na eliminação de populações consideradas perigosas. A operação policial realizada recentemente no Complexo do Alemão — a mais letal já registrada no país, com mais de uma centena de mortos — é expressão contemporânea dessa longa trajetória de controle armado e de um modelo de Estado que governa pela força, não pela lei. Sob o governo de Cláudio Castro, o Rio de Janeiro volta a ser o laboratório da “guerra interna” que o país insiste em travar há décadas: operações espetaculares, resultados pífios, mortes em larga escala e impunidade. Embora esse padrão de atuação estatal não seja novo, o risco, reforçado pela solidariedade recebida de outros governadores, é que se generalize, inspirando políticas de segurança militarizadas e letais sob o pretexto de “retomar o controle” dos territórios populares.

A retórica da “guerra ao crime” sustenta que pretende enfraquecer o crime organizado e retomar territórios dominados por facções. Na prática, repete-se o padrão de incursões sem sustentação investigativa, com planejamento militarizado, baixíssimo controle civil e alta letalidade. A operação no Complexo do Alemão reproduz, em escala ampliada, a mesma lógica que marcou ações policiais no Jacarezinho, Maré, Vila Cruzeiro e Penha. A cada episódio, a sociedade assiste a uma demonstração de força que, ao mesmo tempo, reafirma a impotência do Estado em garantir segurança efetiva como direito social.

O contraste entre o gasto com policiamento ostensivo e a ausência de investimento em investigação é brutal. Dados divulgados pela Folha de S. Paulo, a partir de estudo da Plataforma Justa, mostram que o governo do Rio de Janeiro não investiu um único real em perícia técnico-científica em 2024, enquanto destinou mais de R$ 10 bilhões às corporações policiais[1]. O dado escancara a contradição fundamental de um modelo que aposta na força bruta e despreza a produção de provas, a investigação qualificada e o trabalho científico de elucidação de crimes. Em outras palavras: o Estado mata, mas não investiga. A impunidade, medida pela baixa taxa de esclarecimento de homicídios — apenas 36% no Brasil, segundo pesquisa do Instituto Sou da Paz[2] —, alimenta o descrédito nas instituições e a crença de que a segurança só pode ser garantida pela eliminação física do inimigo. É a consagração do populismo punitivo exacerbado, em que a eficácia se mede pelo número de mortos e não pelo devido processo e a responsabilização criminal.

Enquanto o Estado insiste em políticas repressivas de baixa eficácia, a criminalidade organizada se sofisticou. As facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) consolidaram redes nacionais e transnacionais de atuação, articulando o tráfico de cocaína proveniente dos países andinos com mercados ilegais diversificados — mineração clandestina, contrabando, extorsão, tráfico de armas e exploração de serviços em territórios sob controle[3]. No caso do CV, o domínio de favelas e o controle sobre populações locais tornaram-se ainda mais rentáveis que o próprio tráfico. O crime se territorializou e se institucionalizou: organiza-se, regula mercados, impõe normas e disputa legitimidade com o Estado.

Esse processo coloca o Brasil diante do risco concreto de uma mutação institucional que já se anuncia em algumas regiões: a formação de um “narcoestado difuso”, no qual redes criminais penetram nas economias formais e influenciam estruturas políticas[4]. Ainda que o termo deva ser usado com cautela, os indícios são inegáveis: a infiltração do dinheiro ilícito em campanhas eleitorais, na economia do transporte, da construção civil e até em contratos públicos amplia o poder das facções para além do tráfico. O crime deixa de ser fenômeno marginal e passa a funcionar como engrenagem oculta da política e dos negócios.

A flexibilização da política de controle de armas no governo Bolsonaro multiplicou os arsenais em circulação, fragilizando o controle estatal e fortalecendo tanto facções criminosas quanto milícias armadas. Em poucos anos, mais de um milhão de novas armas ingressou legalmente no mercado civil, muitas delas desviadas para grupos ilegais[5]. O resultado é a fusão de fronteiras entre o “legal” e o “ilegal”: caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) tornaram-se canais de abastecimento de organizações criminosas, e as milícias cariocas, amparadas por segmentos políticos e empresariais, consolidaram-se como o principal exemplo de poder armado com verniz de legitimidade social e política. Soma-se a isso o uso crescente de armas de guerra e tecnologias sofisticadas, como fuzis de precisão, granadas e drones pelo crime organizado, indicando a presença de consultores militares e estratégias paramilitares, fragilizando ainda mais o sempre precário monopólio legítimo da violência pelo Estado.

No plano internacional, observa-se um realinhamento preocupante. A política externa norte-americana, reconfigurada pelo atual governo de Donald Trump, passou a classificar grupos ligados ao tráfico de drogas como organizações terroristas, permitindo o tratamento dessas redes sob a lógica da guerra. Essa militarização discursiva e jurídica atravessa fronteiras e legitima práticas de extermínio sob o pretexto de segurança[6]. A América Latina volta a ser vista como fronteira a ser “pacificada”, com a relativização da soberania nacional para lidar com o crime, e no Brasil há adesão explícita de parte do sistema político a esse paradigma — em que as favelas são tratadas como territórios inimigos a serem conquistados e os grupos ligados ao tráfico, ao invés de presos e responsabilizados pela Justiça, podem ser simplesmente executados sem julgamento.

As transformações recentes nas sociedades contemporâneas alteraram profundamente as crenças e expectativas depositadas na democracia como barreira contra a barbárie. A globalização, a reinvenção do capitalismo neoliberal, as novas formas de trabalho e de vínculo entre governantes e governados, a flexibilização das regras legais e morais e a reconfiguração do sagrado e do simbólico enfraqueceram a capacidade dos Estados — inclusive dos mais comprometidos com os direitos humanos — de formular e implementar políticas de segurança inovadoras e romper com o passado autoritário. Em vez de rupturas, o que se observa é a persistência de uma linguagem e de práticas que se repetem, ainda que o mundo social tenha se transformado.

Essas dinâmicas se alimentam de uma mudança de sensibilidade social sobre o delito e a punição. Em sociedades marcadas por altas taxas de homicídios e domínio territorial de grupos armados, cresce a demanda por respostas imediatas e punitivas. Norbert Elias, ao examinar o processo civilizador, demonstrou que o controle da violência e a formação de sensibilidades mais contidas dependem de um longo aprendizado institucional e social. Quando esse processo se interrompe, como ocorre em contextos de autoritarismo ou de abandono das funções estatais, emergem formas regressivas de sociabilidade baseadas na força e na vingança. No caso brasileiro, a precária implementação do modelo penal correcionalista, adotado pela Lei de Execuções Penais em 1984, abriu espaço, mesmo no contexto da redemocratização, para políticas de encarceramento em massa, criminalização da pobreza e legitimação de práticas de extermínio. A violência policial, a impunidade e a naturalização da morte tornaram-se elementos de um mesmo regime de sensibilidade regressiva, que corrói a própria ideia de civilidade democrática.

Uma evidência desse quadro aparece na pesquisa “Vitimização e Percepção sobre Violência e Segurança Pública”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) junto ao Datafolha, divulgada em outubro de 2025[7]. O levantamento mostra que cerca de 23,5 milhões de brasileiros vivem em áreas sob forte influência de facções criminosas ou milícias, e que mais de 10 milhões afirmam conviver com execuções e desaparecimentos forçados em suas comunidades. Esses dados revelam que o domínio territorial e o controle armado deixaram de ser fenômenos periféricos e passaram a estruturar a experiência cotidiana de segurança e medo em amplas parcelas da população brasileira, reforçando a percepção de um Estado ausente e de uma sociabilidade marcada pela violência e pela desigualdade.

Entre o domínio das facções e o medo da polícia, os moradores vivem sob soberanias concorrentes que operam com a mesma lógica de violência arbitrária. As operações de alta letalidade são apenas a face visível de um sistema que, incapaz de prevenir ou investigar, transforma o uso da força em espetáculo e substitui a política por operações midiáticas. Desde Ralf Dahrendorf, sabemos que o delito é um indicador da perda de legitimidade do Estado: quando a autoridade pública não é reconhecida como justa, o conflito social deixa de ser mediado institucionalmente e explode em violência. A criminalidade, nesse sentido, revela a erosão da confiança no Estado como instância de regulação legítima — uma crise que, no Brasil, combina desigualdade estrutural, ausência de políticas públicas e distanciamento das instituições em relação às classes populares[8].

É nesse contexto que se insere o debate sobre o futuro da segurança pública no Brasil. O campo progressista, historicamente vinculado à defesa dos direitos humanos, precisa incorporar definitivamente a agenda da eficácia e da reestruturação institucional. Direitos e segurança não são antagônicos, são interdependentes. O desafio está em romper com o falso dilema entre “garantismo e repressão” e reconhecer que sem investigação, sem coordenação e sem presença institucional contínua não há garantia de direitos.

A experiência recente da Operação Carbono Oculto, em São Paulo, oferece um vislumbre de alternativa. Ali, uma ação coordenada entre Ministério Público, polícias estaduais e federal e o COAF atacou a base financeira do PCC, desarticulando o circuito de lavagem de dinheiro que sustenta a facção[9]. É esse tipo de inovação, baseada em inteligência, cooperação e repressão econômica, que aponta um caminho de eficácia dentro da legalidade. Diferentemente das incursões armadas, operações desse tipo não dependem de espetáculo, mas de capacidade técnica e política.

O debate sobre a PEC da Segurança Pública é parte desse esforço de reconstrução. Constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) pode significar mais integração entre União, Estados e municípios, com coordenação federal e maior controle externo. Mas é evidente que leis são condições necessárias, nunca suficientes. Sem recursos, sem inteligência e sem governança, o risco é apenas dar roupagem constitucional à mesma política de fracassos acumulados.

É importante lembrar que a desocupação de territórios dominados por grupos armados já foi realizada de forma muito mais eficaz no próprio Complexo do Alemão, no início da implementação do programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Apesar de todas as críticas à forma como o projeto foi conduzido, especialmente quanto à sua descontinuidade e falta de integração com políticas sociais, é inegável que naquele momento houve uma combinação mais equilibrada entre ação policial, controle territorial e políticas de cidadania. A retomada de áreas estratégicas, com a prisão de lideranças do tráfico e a redução temporária da circulação de armas, criou uma janela de oportunidade para a reconstrução de vínculos entre Estado e comunidade.

Essa experiência demonstra que a necessidade de desarmar e prender as lideranças criminosas não é incompatível com a defesa dos direitos humanos. O que se exige é uma política pública articulada, que garanta simultaneamente segurança e inclusão. É indispensável assegurar a presença da polícia de forma contínua, mas também investir em emprego, renda, educação, lazer e liberdade de ir e vir para a população dessas regiões, que há décadas vive privada do direito básico à segurança. Isso só será possível com um esforço coordenado entre União, Estado e Município, com reciclagem das polícias, maior controle e responsabilização por abusos, uso ampliado de body cams e mecanismos institucionais efetivos de controle externo. A recuperação desses territórios exige mais do que incursões; requer projeto, coordenação e compromisso democrático.

Nesse sentido, mudanças legais como as propostas no chamado “pacote antifacções” podem ser necessárias, sobretudo para enfrentar as estruturas financeiras e organizacionais do crime. No entanto, não são soluções milagrosas. A experiência internacional mostra que reformas legais sem capacidade institucional e sem compromisso com a legalidade democrática tendem a fracassar ou a produzir novos abusos. O enfrentamento ao crime organizado não pode se dar à custa do devido processo legal, nem pode relativizar direitos e garantias fundamentais, como pregam os defensores do modelo Bukele, baseado em encarceramento em massa e suspensão de direitos. O desafio brasileiro é demonstrar que é possível combater o crime com firmeza e dentro da lei, fortalecendo as instituições e ampliando a legitimidade do Estado democrático de direito.

Referências
[1] Folha de S. Paulo, “Com foco em policiamento, segurança no RJ tem zero investimento em provas técnicas e científicas”, 28 out. 2025.
[2] Instituto Sou da Paz. Onde mora a impunidade: estudo sobre a investigação de homicídios no Brasil. São Paulo, 2023.
[3] Global Initiative Against Transnational Organized Crime. Organized crime is driving a deadly surge in violence in Brazil. Geneva, 2024.
[4] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Relatório Nacional sobre Facções Criminosas e Governança do Crime no Brasil. São Paulo, 2024.
[5] Instituto Sou da Paz / Igarapé. Armas e munições no Brasil pós-Bolsonaro: balanço da política de controle. São Paulo, 2023.
[6] Washington Office on Latin America (WOLA). The “War on Drugs” Reborn: Trump’s Doctrine and Latin America’s Militarization. Washington, 2021.
[7] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Vitimização e percepção sobre violência e segurança pública: pesquisa FBSP/Datafolha 2025. São Paulo: FBSP, 2025. Disponível em: https://forumseguranca.org.br. Acesso em: 30 out. 2025.
[8] Dahrendorf, R. Law and Order. London: Stevens, 1968.
[9] Ministério Público de São Paulo (MPSP). Relatório da Operação Carbono Oculto. São Paulo, 2024.

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