Política e Polícia

A legitimidade da polícia

A questão fundamental é até onde vai a teoria da legitimidade procedimental e onde começa a da dissuasão num país onde sequer as autoridades estão acostumadas a cumprir a lei

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Glauco Silva de Carvalho

Bacharel em Direito (USP), mestre e doutor em Ciência Política (USP). Coronel da reserva da PMESP, foi diretor de Polícia Comunitária e Direitos Humanos e Comandante do Policiamento na Cidade de São Paulo

Cerca de oito anos atrás, eu era comandante da região metropolitana norte, que envolve a cidade de Guarulhos e outras ao seu redor. Com intuito de prestigiar a tropa e conhecer sua realidade, tirava as quintas-feiras para rondar toda a área, o que era uma imensidão, pois ia de Caieiras, Francisco Morato e Franco da Rocha até Santa Isabel e Arujá. Saíamos às 14h ou 15h e retornávamos às 3h ou 4h da manhã. E recomeçava às oito e meia do outro dia. Não era fácil, mas vi, aprendi e presenciei muita coisa nesse período.

Certa vez, numa dessas rondas, o Copom irradiou ocorrência de perturbação do sossego público por volta de 1h30 da manhã, no extremo leste de Guarulhos. Nós estávamos muito próximos, e resolvi apoiar a viatura da área. Pela proximidade, chegamos antes. Era um bar com som no último volume, realmente muito alto. Eu me dirigi ao dono do bar, um rapaz jovem, com cerca de 25 anos. Gentilmente, pedi a ele que abaixasse o som, porque estava perturbando a vizinhança. Parecia que eu estava falando com um poste. Pedi novamente, de forma muito educada, que abaixasse o som, explicando mais longamente o prejuízo que o volume de seu som trazia para as pessoas que moravam no entorno e teriam que trabalhar na sexta-feira. Um funcionário dele abaixou o som. Resolvi me retirar, momento em que chegava a viatura designada para atender a “ocorrência”. Assim que pus os pés na calçada, mesmo estando ali duas viaturas com seis policiais ao todo, ele voltou a subir o som. Pedi para que ele abaixasse novamente, e passasse a respeitar a atividade policial e seus vizinhos. O som foi abaixado. Assim que saí novamente do bar, ele voltou a subir o som, pela terceira vez. Até então, tudo se dera com a máxima cordialidade. Nessa terceira vez, os policiais, já irritados, queriam prendê-lo e levá-lo para o distrito.

Por essas e outras tantas razões, dou grande valor ao policial de rua, que está cotidianamente no serviço de policiamento. Não é fácil, pois essas situações nos irritam por demais.

A legitimidade dos órgãos de persecução criminal é um tema que perpassa o tempo e as esferas política, acadêmica e institucional. A legitimidade do Estado está, mesmo, no cerne de sua conceituação. Há aproximadamente um século, Weber o definiu como o “monopólio legítimo da força física” (Ciência e Política: duas vocações).

Não se pode falar em Estado se ele não está alicerçado em forte legitimação de seu povo. Questão controversa, tanto na Filosofia Política, quanto na Ciência Política, é entender se Estados autoritários estão fundamentados em legitimidade popular. Em rápida e sucinta análise, tenho para mim que sim, vez que, se não estivessem, não teriam como seus governantes se manterem no poder. O caso da Síria, que vive turbulência há mais de uma década, é exemplo evidente de que, quando não há um mínimo de legitimidade, a guerra civil se implanta.

E quando falamos em legitimidade do Estado, uma de suas principais instituições nos vem à mente: a polícia.

O Núcleo de Estudos da Violência (NEV) vem, há algum tempo, trazendo à baila o tema da legitimidade das polícias perante a sociedade. André Zanetic, Bruno Paes Manso, Ariadne Lima Natal e Thiago Rodrigues Oliveira produziram estudos e pesquisas acerca do assunto.

Em dois desses estudos, mais especificamente, “Legitimidade da polícia” (2016) e “Preditores e impactos da Legitimidade Policial: testando a justeza procedimental em São Paulo” (2020), os autores apresentam, em suma, a questão de por que e como as pessoas se submetem à autoridade da Polícia e, por consequência, do Estado.

Há duas teorias acerca do assunto. Uma, que poderíamos denominar teoria da dissuasão, pretende explicar que apenas policiamento, efetivos policiais e viaturas conseguem incutir no cidadão o dever de cumprir a lei e as normas sociais. Aliás, incutir não, criar desestímulos, via repressão, quando do descumprimento. Ou seja, é a ameaça de sansão que tira do indivíduo o desejo de praticar o crime.

De outro lado, está a teoria da legitimidade e da justeza procedimental, segundo a qual a população tende a cumprir as leis e as normas quando percebe que os procedimentos da polícia (e de outros órgãos do sistema de persecução criminal) são justos, corretos e íntegros. Para essa corrente, o “meio” é essencial para que haja consentimento da sociedade em obedecer às regras da sociedade.

Evidentemente que, por minha formação e caráter pessoal, sou inclinado a optar e defender a teoria da justeza procedimental.

Muito melhor, menos custoso e mais proveitoso para todos — sociedade e polícia — que o cumprimento das normas legais se dê de forma voluntária e consciente. Mas é, também, forçoso lembrar que a dissuasão, não raras vezes, se faz necessária.

Em um país em que as autoridades públicas não estão habituadas a cumprir a lei; segmentos ricos desdenham do policial, por se entenderem acima das normas e das instituições (como vimos em algumas cenas horrendas durante a pandemia); e segmentos mais pobres entendem que o Estado é mera ficção, fica difícil equacionar a questão.

A questão fundamental é até onde vai a teoria da legitimidade procedimental e onde começa a da dissuasão. Qual o padrão mais adequado a países com diferentes IDH, condições socioeconômicas e maturidade política? Qual a quantidade de policiamento deve ser empregada para que a teoria da justeza procedimental possa ser aplicada com relativa tranquilidade?

Não são questões fáceis para serem respondidas. Mas não devemos abandonar eventuais testes diante de percalços que advenham.

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