Múltiplas Vozes

A investigação dos homicídios no Brasil: uma realidade paradoxal*

Para todos os estratos da população brasileira, há muito vem se agravando a sensação de insegurança. Não podemos considerar essa percepção incoerente, pois os dados oficiais apontam altos índices de criminalidade violenta por todo o país

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Nelmo Passos

Mestre em Ciências Policiais na Especialização Gestão da Segurança pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna - ISCPSI – Lisboa

“Os valores da liberdade e da segurança são indissociáveis e interdependentes numa sociedade democrática” (DUQUE, 2015, p. 57), e sabemos que raramente uma população terá liberdade em um ambiente exíguo de segurança pública. Essa conectividade entre liberdade e segurança está bem explícita também na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 10 de dezembro de 1948, em seu art. 3°: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Assegurar a sensação de segurança e liberdade “consiste na ausência de ameaças aos valores fundamentais da cidadania” (CLEMENTE, 2015, p. 9).

Como já foi abordado por Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p. 123), no contexto de desenvolvimento da democracia brasileira, são construídas respostas públicas frente ao crime, à violência e ao pressuposto democrático do acesso à justiça e da garantia de direitos. Considerado um grande problema social e enquadrado no rol dos crimes graves no Brasil, o homicídio tem notoriedade negativa em todas as camadas sociais, afetando a rotina do país e sobretudo das famílias e comunidades das vítimas. Nas últimas décadas, as taxas de homicídios são alarmantes. É verdade que no ano de 2019 há uma queda dos índices de mortes violentas regionalizados[1] e até mesmo em âmbito nacional[2], o que tem levado gestores públicos a uma manifestação jactante como responsáveis por este feito. Evidências empíricas, entretanto, podem desmistificar tal discurso reivindicatório, aduzindo novas possibilidades causais da referida diminuição, oriundas no próprio ambiente do crime.

A decepção crônica da opinião pública diante da falta de segurança e de justiça é perceptível nas frequentes notícias veiculadas diariamente pelos meios de comunicação.

A população fica temerosa diante de tantos acontecimentos letais, em um ambiente envolto de violência e de ameaças inesperadas. “Segundo os dados oficiais do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), em 2017 foram 65.602 homicídios no Brasil, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada cem mil habitantes” (Atlas da Violência, 2019, p. 5). “A cidade tem de ser um espaço de cidadania e nunca uma fortaleza de medos” (CLEMENTE, 2015, p.20), a população não se sente apenas aterrorizada, mas, também impotente, pois as forças de segurança[3] incumbidas de responder a essas ameaças parecem incapazes de atingirem esse objetivo.

As notícias de vítimas dessas violências urbanas existentes em uma cidade ou área atingem raios de circulação cada vez maiores, por meio de redes sociais – WhatsApp, Instagram etc., facilidades dos tempos modernos, intensificando a preocupação da população geral, tendo sido essas pessoas vitimadas ou não. Como argumenta Kessler (2011, p. 84): “Projetada no plano espacial, então, uma lógica entre as taxas de criminalidade e medo é restaurada, no entanto, a sensação de insegurança é um fato social diferenciado de crime, com suas dinâmicas e consequências sociais específicas”.

Para todos os estratos da população brasileira, e sobretudo para os baixos e médio-baixos, há muito vem se agravando a sensação de insegurança. Não podemos considerar essa percepção como incoerente, nem inconsistente, pois os dados oficiais apontam altos índices de criminalidade violenta por todo país. Vale mencionar que o Brasil tem enfrentado um conjunto de ameaças à segurança da sociedade, e os conflitos entre facções são a melhor exemplificação de que essas ameaças reforçam essa sensação de insegurança e de medo. Em uma região sob ameaças, a segurança e a liberdade fundam-se na existência da confiança de que a polícia cumprirá seu papel constitucional. Ao contrário dessa confiança, para Kessler (2011, p. 85), a ideia de sentir insegurança e medo, que ocupa um lugar central, também inclui outras emoções excitadas, como raiva, indignação ou impotência.

A rotina da nossa sociedade, hodiernamente, apresenta-se orientada a conviver com temas como violência, crime e medo. Esse incremento na pauta de temas do brasileiro, muitas vezes como central, dá-se perante a presença do crime como matriz relevante da sensação de insegurança. “A fala do crime – ou seja, todos os tipos de conversas, comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o medo como tema – é contagiante” (CALDEIRA, 2000). Ações criminosas, em suas profusas formas, provocam fortes agressões à população, através de notícias veiculadas pelos meios de comunicação que exploram em demasia o sensacionalismo do crime. Essa forma de exploração das notícias sobre crimes concerne aos valores impostos à sociedade.

Será a certeza da impunidade que leva essas pessoas a cometerem tantos crimes reiteradas vezes, de assumirem espaços que deveriam ser ocupados pelo poder público?

Será que o trabalho investigativo da polícia está seguindo um modelo eficiente?

De acordo com Misse (2010, p. 35), “como se sabe, os estudos de fluxo do sistema de justiça criminal têm demonstrado que o principal gargalo está entre a polícia e o Ministério Público e não no Judiciário, que responde pela lentidão”. Deste modo, é fundamental que os setores de investigações sigam um processo de investigação capaz de fornecer informações e produção de provas, com propósito de contribuir na elucidação dos fatos, atribuindo uma autoria.

É sabido que no Brasil há um debate sobre o modelo de investigação criminal adotado, com indícios de um perfil burocrático e descentralizado que vem comprometendo a eficiência do sistema de persecução penal. Para Azevedo e Vasconcellos (2011, p. 61) “o modelo do inquérito policial reforça um perfil burocrático e bacharelesco em detrimento das atividades de investigação policial”. Existem casos de inquéritos policiais que são devolvidos pelo Ministérios Público (MP) para correções de inconsistências no processo e solicitado diligências para esclarecimentos. Trilhando a conhecida trajetória cartorária dos inquéritos da Polícia Civil. Misse (2010, p. 37) destaca, ainda: “É o chamado ‘pingue-pongue’, o vaivém do inquérito policial entre a delegacia e o MP – um modo de o inquérito não ficar em lugar nenhum –, até que – passados meses e, em não poucos casos, anos – ele venha a ser arquivado”.

“O fato é que a história recente da segurança pública no Brasil tem sido marcada por demandas acumuladas e mudanças incompletas” (LIMA; BUENO; MINGARDI, 2016, p. 50). O que exprime, de acordo com Lima, Sinhoretto e Bueno (2015, p 125), “altas taxas de violência associadas às elevadas taxas de impunidade, rebatendo uma baixa confiança nas leis e nas instituições”.

Ainda sobre esse diagnóstico, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em trabalho de monitoramento da Meta 2 da Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (ENASP)[4] em 2012, divulgou que:

“as baixíssimas taxas de elucidação de homicídios observadas no Brasil podem ser diretamente atribuídas não apenas à precariedade das condições de trabalho e da infraestrutura das polícias civis e da perícia criminal (responsáveis pela investigação e elucidação dos assassinatos), como também aos baixos níveis de articulação institucional entre os órgãos que compõem o Sistema de Justiça Criminal (aspecto que acarreta um processamento judiciário lento e pouco eficaz dos casos esclarecidos).” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2014, p. 25-26).

Infere-se, nessa perspectiva, como equívocos no processo de gestão da investigação produzem efeitos técnicos e sociais da mais alta relevância para a população, como a baixa capacidade de produzir resultados eficazes e elucidação dos crimes, e como consequência a sociedade segue sofrendo com a violência.

É interessante provocar uma reflexão produtiva sobre os comportamentos sociais, o papel do Estado, os processos de investigação de homicídios, buscando, com base em fatos empíricos, as alternativas mais profícuas e eficientes para administração de conflitos sociais e da atuação policial.

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