A discussão sobre o uso da força por parte das polícias permanece peça central do debate em torno da segurança pública no Brasil
O aumento da transparência, do controle da atividade policial e a mudança do discurso político em torno da letalidade deu conta não só de reduzir a letalidade, mas também de mudar o perfil das vítimas
Dennis Pacheco*
Mestrando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
David Marques
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e Coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A discussão sobre o uso da força por parte das polícias permanece peça central do debate em torno da segurança pública no Brasil.
O mandato policial compreende a resolução de conflitos e garantia do direito fundamental à segurança, pelo uso do poder coercitivo e, quando necessário, da força física, amparado pela prerrogativa da legitimidade e legalidade de seu uso pelo Estado. Tais critérios (legalidade e legitimidade) implicam a definição de medidas e circunstâncias legítimas de uso adequado da autoridade e da força policiais, fazendo com que o uso profissionalizado, isto é, estritamente necessário, proporcional e progressivo da coerção e da força sejam os próprios estados da arte da atividade policial.
O que verificamos historicamente em alguns estados do Brasil, contudo, é a consolidação de padrões absolutamente abusivos e não profissionalizados de uso da força.
O cenário nacional é de manutenção da taxa em 3,2 mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) por 100 mil habitantes, contudo, é preciso olhar mais detalhadamente para os estados, dado que há grande heterogeneidade territorial na distribuição da letalidade policial.
Amapá segue tendo a mais alta taxa de letalidade policial do Brasil, seguido por Bahia, Rio de Janeiro, Sergipe, Pará e Goiás. Em contrapartida, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rondônia e Piauí têm taxas menores que 2 mortes causadas pela polícia para cada 100 mil habitantes.
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023.
Apesar de serem um importante indicador do uso da força por parte das polícias, é possível refinar nossos olhares para além daquilo que nos informam as taxas, a fim de melhor compreender a intensidade do uso da força pelas polícias. Para isso, há três principais indicadores internacionais de mensuração da proporcionalidade do uso da força policial com base em dados estatísticos, dos quais dois têm sido utilizados anualmente nas análises deste anuário.
- a proporção de mortes decorrentes de intervenções policiais em relação ao total de mortes violentas intencionais (MVI).
- a relação entre o total de mortos em intervenções policiais e o total de policiais assassinados.
O terceiro principal indicador é calculado pelo cômputo da proporção entre mortos e feridos pelas polícias. A razão de ele não ser utilizado no Brasil é a baixa disponibilidade de dados de feridos pelas polícias.
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023.
Considera-se que há uso abusivo da força por parte das polícias quando o indicador da proporção de MVI em relação ao total das MDIP ultrapassa 10%. Nas proporções observadas no Brasil, o indicador denota que as mortes causadas pelas polícias ocupam um espaço muito significativo e destacado entre os agentes sociais causadores de mortes violentas intencionais. No Amapá, mais de 1 em cada 3 mortes violentas intencionais foi causada pelas polícias.
Quanto à proporção entre letalidade e vitimização policial, proporções superiores a 15 civis mortos para cada policial morto indicam uso excessivo da força. No Paraná, houve 479 mortes decorrentes de intervenções policiais para cada vitimização policial. Os números observados contrariam a narrativa padrão de uso proporcional e reativo da força policial, de que as mortes ocorreriam em decorrência de confrontos.
É evidente que o confronto faz parte da atuação policial e o uso da força é constituinte da profissão, contudo, a desproporcionalidade do uso da força está suficientemente evidente em ambos os indicadores, assim como a grande heterogeneidade entre as unidades da federação, que é historicamente consolidada e sinaliza concentração territorial e institucional da letalidade policial no Brasil. Algumas polícias são muito mais violentas que outras. Amapá, Bahia, Goiás, Rio de Janeiro e Sergipe seguem sendo as polícias que mais fazem uso abusivo da força no país.
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023.
A narrativa padrão de confronto não só não se sustenta diante da desproporcionalidade do uso da força de parte das polícias do Brasil, cujos dados estatísticos revelam desalinhamento com os princípios de progressividade, proporcionalidade e legalidade, ela decorre de investimentos extremamente ineficazes, ineficientes e inefetivos dos recursos do Estado num modelo de policiamento que não é capaz de reduzir a violência, conforme temos atestado nas últimas décadas. Prova disso é o fato de que 7 das 10 cidades com as maiores taxas de mortes violentas intencionais do país integram os estados com as polícias mais violentas do país (Amapá e Bahia). Quando olhamos para as 20 cidades com as maiores taxas de MVI, estão nos estados com polícias mais violentas do país (Amapá, Bahia e Rio de Janeiro). Obviamente, polícias violentas não reduzem a violência.
Os dados que permitem construir o perfil das vítimas da letalidade policial mantêm são faceta evidente e consolidada historicamente do racismo que estrutura a sociedade brasileira. 83% dos mortos pela polícia em 2022 no Brasil eram negros, 76% tinham entre 12 e 29 anos. Jovens negros, majoritariamente pobres e residentes das periferias seguem sendo alvo preferencial da letalidade policial e, em resposta a sua vulnerabilidade, diversos estados seguem investindo no legado de modelos de policiamento que os tornam menos seguros e capazes de acessar os direitos civis fundamentais à não-discriminação e à vida. O dado sobre local de ocorrência revela a prevalência (68,1%) dos espaços públicos como de maior frequência das ocorrências de MDIP, ao passo que, residências das vítimas e outros tipos de local somam juntos um terço das ocorrências, ou seja, 1/6 das vítimas de letalidade policial foi morta dentro de casa.
Estudo realizado pelo FBSP em parceria com o UNICEF documentou parte do processo de construção, implementação e avaliou o impacto do Programa Olho Vivo da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Em resumo, o Programa incorporou ações políticas (sendo a de maior visibilidade a mudança discursiva do governador em torno da letalidade), administrativas (sendo a mais visível delas a Comissão de Mitigação de Não Conformidades) e a componente tecnológica (na figura das câmeras, da transmissão e armazenamento das imagens captadas) e deu conta de reduzir, entre 2021 e 2022, 63,7% da letalidade geral, 33,3% da letalidade nos batalhões em que não houve implementação de câmeras e 76,2% da letalidade nos batalhões em que as câmeras passaram a ser utilizadas.
O aumento da transparência, do controle da atividade policial e a mudança do discurso político em torno da letalidade deu conta não só de reduzir a letalidade, mas também de mudar o perfil das vítimas, fazendo com que adolescentes deixassem de ser os principais vitimados pela letalidade policial.
A heterogeneidade da letalidade policial nos diferentes estados do país, sua concentração territorial, bem como a experiência bastante exitosa do Programa Olho Vivo em São Paulo apontam para a importância de focalização do perfil das vítimas, evidenciam que políticas públicas de redução da letalidade eficazes devem ser focalizadas, holísticas e integrativas de diversas instituições.
* Este texto foi originalmente publicado na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada no https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/