Múltiplas Vozes 21/11/2025

Combate às facções ou palanque político? Uma reforma legislativa movida pelo improviso e pelo populismo penal

O contexto eleitoral e a centralidade da segurança pública no debate político acabaram por contaminar uma reforma legal que deveria ser tratada como política de Estado. O combate ao domínio armado de territórios, a infiltração do crime organizado nas instituições e sua expansão econômica exigem estratégia, integração operacional, fortalecimento da inteligência e reformas estruturais, e não pirotecnia penal

Compartilhe

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Professor da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A operação policial nos complexos do Alemão e da Penha, com 121 mortos, entre eles quatro policiais, marcou mais do que um episódio trágico: ela expôs a naturalização da letalidade policial como resposta ao domínio territorial das facções. No Rio de Janeiro e em outras capitais onde o Estado perdeu o domínio territorial para grupos armados e é incapaz de conter a criminalidade cotidiana, cresce a percepção de que apenas o uso extremo da força pode restaurar a ordem. A violência letal da polícia, na ausência de alternativas institucionais, torna-se sinônimo de política pública.

Esse ambiente de desordem social, somado à ascensão de facções com controle territorial, econômico e prisional cada vez mais sofisticado, cria o cenário ideal para respostas legislativas imediatistas. É nesse contexto que o governo federal tentou, nos últimos meses, retomar uma agenda de reformas com alguma racionalidade, por meio da PEC da Segurança Pública e do PL Antifacções. Neste último, elaborado ao longo de meses e encaminhado ao Congresso logo após a operação policial mais letal da história, propunha um reforço da capacidade investigativa, da inteligência financeira, da governança prisional e da integração federativa, e não uma ruptura com o marco legal existente.

O PL original partia de uma premissa clara: não é possível enfrentar facções com um sistema penal fragmentado, assimétrico e reativo. Por isso, reconhecia o papel de coordenação federativa da União e de atuação estratégica da Polícia Federal, preservava a possibilidade de investigação pelo Ministério Público, fortalecia a atuação integrada com as polícias estaduais, estabelecia distinção clara entre lideranças e base das facções, propondo uma cláusula de redução de pena (privilegiadora) e adotava instrumentos mais eficientes de confisco, sem depender de condenação definitiva.

Mas a tramitação legislativa rapidamente foi capturada pela disputa político-eleitoral. A designação, para a função de relator, do deputado Guilherme Derrite, que deixou temporariamente o cargo de secretário de segurança pública em São Paulo para retomar seu mandato parlamentar, transformou o debate em palco de afirmação ideológica. Ao longo de poucos dias, Derrite apresentou uma sequência de cinco versões improvisadas, refletindo pressões corporativas e alinhamento político-ideológico. A cada rodada, o texto oscilava entre equiparar facções ao terrorismo, restringir a atuação da Polícia Federal, enfraquecer a investigação pelo Ministério Público ou criar tipos penais redundantes que fragmentavam ainda mais o ordenamento legal. As alterações não resultaram de reflexão técnica ou diálogo federativo, mas da pressa em demonstrar “endurecimento penal” como atributo de coragem política.

A condução da tramitação também revelou sinais de interesses que extrapolam o debate sobre segurança pública. A reunião noturna do relator, em um restaurante de luxo em Brasília, com os ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha e Arthur Lira, levantou suspeitas de que o endurecimento penal proposto contra as facções serviria simultaneamente para ressuscitar a chamada “PEC da blindagem”, com “jabutis” inseridos no substitutivo para proteger agentes políticos e empresários envolvidos em crimes econômicos e de corrupção. Em outras palavras, o mesmo pacote que promete punir duramente o crime armado com domínio territorial poderia, nas entrelinhas, funcionar para manter intactas as dinâmicas do crime organizado de colarinho branco, que opera por meio de redes políticas, financeiras e empresariais, e não nas favelas e periferias.

A aprovação do substitutivo na Câmara, por 370 votos a 110, com três abstenções, não representou um avanço técnico na política de enfrentamento ao crime organizado no Brasil. Representou, sobretudo, uma demonstração simbólica de força baseada em legislação penal de emergência, usada para construir uma clivagem política entre governo e oposição. A votação serviu ao propósito de inscrever no imaginário público a ideia de que apenas os defensores do projeto “querem combater as facções”, enquanto os críticos seriam obstáculos à segurança, uma falsa dicotomia criada para produzir dividendos eleitorais.

O substitutivo aprovado manteve o núcleo de hiperendurecimento penal, criando um tipo único e indiferenciado de participação em facção criminosa, com penas mínimas de 20 anos que podem chegar a 66 anos após agravantes, sem distinção entre jovens cooptados e lideranças do crime. Além disso, prevê a supressão do auxílio-reclusão às famílias de condenados por esses crimes, penalizando economicamente pessoas que não cometeram delito algum, aumentando vulnerabilidade social e criando novos ciclos de exclusão.

A proposta aprovada praticamente inviabiliza a progressão de regime, ao prever frações entre 70% e 85% da pena, o que, na prática, transforma o regime fechado em destino quase único de cumprimento da pena, ampliando superlotação e violência institucional. Ao mesmo tempo, permite audiências de custódia virtuais, reduzindo o controle judicial sobre tortura e prisões ilegais num contexto de letalidade policial crescente. A conjunção desses fatores não cria segurança: consolida o ambiente em que facções se fortalecem.

Uma pesquisa divulgada esta semana, realizada pelo Instituto Data Favela e aplicada a 3.954 pessoas envolvidas com o tráfico em 23 estados[1], mostrou que 58% afirmaram que deixariam o crime se tivessem renda e estabilidade, enquanto 31% disseram que não mudariam de condição. A média de renda desses entrevistados era de cerca de R$ 3.536 mensais, mas 63% declararam receber até dois salários-mínimos e 18% afirmaram que “não sobra dinheiro no fim do mês”. Esses números reforçam que não basta endurecer penas; é urgente criar caminhos reais de reinserção social e econômica, com trabalho, educação e perspectivas que tornem o crime menos atrativo. A proposta aprovada, ao focar exclusivamente no encarceramento e na punição, ignora essa dimensão essencial para lidar com o problema da adesão às facções.

No tema-chave do confisco e da perda de bens, o substitutivo aprovado cria um modelo híbrido que combina medidas cautelares amplas com um perdimento definitivo condicionado ao trânsito em julgado. A lei permite o bloqueio e até o uso provisório de bens durante a investigação, inclusive antes da condenação, mas a destinação final desses ativos só ocorre após a decisão definitiva, o que pode levar anos. Essa estrutura produz insegurança jurídica para quem é alvo da medida, sem critérios técnicos claros sobre o que constitui “origem ilícita evidente”, e ao mesmo tempo compromete a efetividade do desmonte financeiro das facções, já que o patrimônio pode ser reinvestido, ocultado ou contestado judicialmente durante o longo curso do processo penal. Embora os valores confiscados sejam destinados aos Fundos Estaduais e ao Fundo Nacional de Segurança Pública, a lei não vincula essa receita a inteligência financeira, perícia contábil, governança prisional ou reintegração social, áreas decisivas para atacar o poder econômico das facções e sua capacidade de cooptação carcerária.

O ambiente de “urgência punitiva” não se limitou ao texto do PL Antifacções. A Câmara aprovou também a Emenda de Plenário nº 25, proposta pelo deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS), que altera a Lei 4.737/1965 para proibir o voto de presos provisórios em eleições e cancelar seus títulos eleitorais, ainda que não tenham sido julgados e possam depois ser absolvidos. A medida afronta diretamente o art. 15 da Constituição Federal, que determina que a suspensão de direitos políticos só pode ocorrer após condenação transitada em julgado. Ao legislar por lei ordinária para restringir direitos fundamentais, a Câmara produziu um gesto meramente simbólico e eleitoral, destinado a sinalizar severidade, mas incapaz de gerar qualquer impacto no combate às facções.

Sob o pretexto de urgência, o debate ignorou questões estruturantes que deveriam estar no centro da formulação de qualquer marco de combate ao crime organizado no Brasil: o impacto carcerário das mudanças, a destinação de recursos para perícia e inteligência, a integração das Guardas Municipais ao sistema de segurança com critérios claros, a qualificação e controle da atividade policial, e a expansão e profissionalização do sistema prisional para impedir que cadeias permaneçam como centros de comando do crime. Nada disso foi debatido.

O contexto eleitoral e a centralidade da segurança pública no debate político acabaram por contaminar uma reforma legal que deveria ser tratada como política de Estado. O combate ao domínio armado de territórios, a infiltração do crime organizado nas instituições e sua expansão econômica exigem estratégia, integração operacional, fortalecimento da inteligência e reformas estruturais, e não pirotecnia penal. Ao transformar esse debate em palco de afirmações ideológicas e respostas imediatistas, a Câmara ignorou as dimensões mais complexas e decisivas do problema. Cabe agora ao Senado resgatar a racionalidade, retomando o caminho da cooperação federativa, da qualificação institucional e da descapitalização do crime organizado.

Com o projeto encaminhado ao Senado, a questão central não é quem deseja combater o crime, que deveria ser consenso. A pergunta relevante é: que modelo de Estado o Brasil pretende construir para enfrentá-lo? Se o Senado resgatar a racionalidade do texto original, com descapitalização, cooperação federativa, proporcionalidade penal, governança prisional e fortalecimento da inteligência, o Brasil poderá transformar o enfrentamento às facções em política de Estado, e não em espetáculo legislativo.

Há, de fato, a possibilidade de que o Senado promova um debate mais técnico e menos refém da conjuntura eleitoral. A Casa dispõe de comissões temáticas com maior tradição de diálogo com especialistas, equipes técnicas que historicamente consideram o impacto orçamentário e carcerário de reformas legais, além de parlamentares com trajetória jurídica e atuação consolidada em temas constitucionais e de segurança pública. Também é no Senado que a cooperação federativa pode ser mais bem discutida, dada a representação direta dos estados e a necessidade de avaliar como União, estados e municípios vão dividir responsabilidades e recursos em um modelo de combate ao crime organizado. Se assumir esse papel com responsabilidade, o Senado pode devolver seriedade a uma agenda que não pode ser decidida ao sabor da urgência midiática.

 

[1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2025-11/pesquisa-aponta-que-maioria-de-envolvidos-gostaria-de-sair-do-trafico

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES