Múltiplas Vozes 21/11/2025

Negacionismo na Segurança Pública: por que ignoramos as evidências que salvam vidas?

A efetivação dos pilares do SUSP (doutrina, informação, territorialização, financiamento e participação) é suficiente para induzir a adoção das melhores evidências e práticas em segurança pública

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Lívio José Lima-e-Rocha

Investigador de Polícia e Professor de Gestão Pública na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre (FGV) e doutorando em Políticas Públicas (UFABC). Pesquisador em Segurança Pública e Cidadania (MACK). Associado sênior e conselheiro fiscal do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Em recente palestra no II Simpósio Discente do Campo de Públicas, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFABC, a professora Concepta Pimentel (UnB) fez uma palestra impactante sobre o uso de pesquisas científicas nas políticas públicas. Entre diversos dados significantes, chamou a atenção um quadro ilustrativo sobre o uso da pesquisas científicas brasileiras por outros países e organizações transnacionais: o Brasil é referência para dezenas de países. Na mesma apresentação, porém, a docente mostrou que essas pesquisas são pouco usadas no próprio país.

Em apertada síntese, Concepta ofereceu diversas reflexões sobre como promover o uso de pesquisas científicas na formulação de políticas públicas. Os estudos brasileiros sobre agricultura e sobre políticas sociais, entre outros temas, são usados para a formulação de políticas dentro e fora do Brasil. Isso nos provocou uma reflexão: o que ocorre na área de segurança pública, na qual testemunhamos, dia sim e o outro também, propostas sem quaisquer evidências, ou mesmo constitucionalidade, como se houvesse um negacionismo como regra nessas políticas?

As últimas semanas, desde o desastre no Rio de Janeiro que algumas pessoas insistem em chamar de “operação” ou se referir a ele como “sucesso”, mesmo que não tenha sequer ameaçado arranhar o lucro e o domínio da facção que era o alvo, forneceram a nós diversos exemplos desse negacionismo na formulação de políticas de segurança pública. E eles teimam em se materializar na discussão que envolve o chamado “PL Antifacção”.

Antes de qualquer consideração, é importante lembrar que boa parte das opções adotadas não é integralmente negacionista: são opções válidas segundo determinados parâmetros. O problema é que sejam usadas sem qualquer parâmetro.

A primeira opção, quase que automática em qualquer discussão sobre segurança pública, é aumento de penas em abstrato. As penas longas funcionam apenas para pessoas que contam com extensa carreira criminosa, reincidências reiteradas ou posicionamento na alta hierarquia do crime organizado. Em outras palavras, são aqueles que demonstraram que não possuem intenção de ressocialização. Nesses parâmetros, nenhum sinal de negacionismo. O negacionismo é adotar o aumento de penas para criminalizar pessoas que não possuem esse perfil.

A forma de negacionismo mais recorrente é a ilusão do endurecimento penal. As evidências de que um mero aumento de pena não funciona podem ser constatadas, indiscutivelmente, no crime de homicídios: a pena em abstrato é de 6 a 20 anos, com diversas regras (qualificação, causas de aumento de pena, hediondez…) que podem aumentá-la. Essa pena está prevista desde 1940. Segundo o Atlas da Violência do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mesmo com a tendência de queda desde o pico em 2017, estamos lidando com mais de 40 mil homicídios por ano. Além disso, o estudo mais recente na UNODC sobre homicídios[1] aponta investimento no sistema de justiça criminal como solução para reduzir homicídios. Em nenhum momento o aumento de pena é apresentado como solução. Diante disso, qual evidência nos leva a concluir que aumentar pena reduz a criminalidade? Enquanto isso, as evidências que resultam em redução das taxas criminais envolvem investimento em educação, prevenção, inteligência e investigação, entre outras frentes.

Se a mentira do endurecimento penal ignora as evidências, a cortina de fumaça da maioridade penal desvia o foco do problema real para uma solução espetaculosa. Sem maiores delongas, as evidências são inequívocas em apontar que essa medida não reduz a criminalidade. No entanto, basta um crime violento cometido por um menor de idade ganhar repercussão para que essa solução volte à mesa. É necessário lembrar que a elevação da quantidade de pessoas presas no sistema comum, desacompanhada de mudança radical das políticas penitenciárias, resulta apenas no aumento do exército de reserva das facções criminosas.

O terceiro, em voga, é o espantalho do narcoterrorismo: tratar o narcotráfico como atividade terrorista. Indo direto ao ponto: é uma ideia tão desprovida de fundamentos que sequer é cogitada em qualquer pesquisa séria na segurança pública. Como o nosso tema é o negacionismo, a ausência de evidências científicas não é um obstáculo para as formulações nessa área. Pela atualidade, cabe uma reflexão um pouco mais elaborada, que pode ajudar quem não é tão familiarizado com o tema.

O primeiro questionamento é o critério “narco”: diversos estudos e relatórios, tanto governamentais quanto do meio acadêmico, apontam que o tráfico de drogas já não é mais a principal fonte de renda das facções brasileiras; logo, se uma facção criminosa não for alvo de investigação relacionada ao tráfico de drogas, ela não poderá ser considerada “terrorista”. Grupos empresariais que dão golpes bilionários ou uma facção que seja rica com o jogo do bicho, por exemplo, jamais serão considerados “terroristas”.

O segundo questionamento é o critério “terrorismo”: as definições governamentais e transnacionais falam sobre uso de armas e táticas e militares contra alvos não-combatentes em razão de política, religião ou outra causa. Entre essas causas não está obtenção de lucro, o objetivo principal das facções brasileiras em atividade.

Retomando a tese da professora Concepta Pimentel, devemos refletir sobre os motivos pelos quais há um posicionamento anticientífico na formulação de políticas públicas. Neste espaço, podemos trazer algumas evidências que podem colaborar com essa reflexão.

Numa perspectiva histórica, temos o problema das organizações policiais e militares dominarem as formulações de políticas públicas, como na elaboração do tema na Constituição Federal de 1988. Isso traz consequências como um insulamento burocrático prejudicial que se manifesta, por exemplo, por uma narrativa tosca de tratar segurança pública como sinônimo de policiamento; logo, só quem pratica policiamento é que poderia falar de segurança pública, contrariando o amplo debate característico da produção científica.

Já na arena política, temos observado diversos atores, tanto do Executivo quanto do Legislativo, que fazem propostas opostas às melhores evidências porque, supostamente, perderiam “poder político”. Todas as atuações e propostas contra a coordenação nacional, por exemplo, são para evitar a perda da “autonomia” dos Estados na segurança pública, como se políticas de saúde pública e educação não possuíssem essa coordenação, sem que se verifique “perda” para as unidades da Federação.

Existe alguma maneira de reduzir o negacionismo na formulação de políticas de segurança pública? Sim. Basta efetivar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), em vigor desde 2018. A efetivação dos pilares do SUSP (doutrina, informação, territorialização, financiamento e participação) é suficiente para induzir a adoção das melhores evidências e práticas em segurança pública. Não estamos precisando reinventar a roda em projetos de lei demagógicos que só visam manter as coisas como estão.

A efetivação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) é, portanto, muito mais que uma medida administrativa. É a materialização de um projeto de país que escolhe a inteligência sobre a ignorância, a vida sobre o espetáculo. Enquanto o negacionismo — seja no endurecimento penal, na maioridade ou no narcoterrorismo — ditar as regras, continuaremos trocando as evidências que salvam vidas por ilusões que rendem manchetes. O SUSP nos oferece a chance de que finalmente haja aprendizado a partir da ciência que nós mesmos produzimos. Cabe a nós exigirmos que essa chance não seja mais desperdiçada.

Referências
[1] Disponível em https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/gsh/2023/Global_study_on_homicide_2023_web.pdf.

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