Ele disse que chegava lá
O PL 1473 de 2025, recém-aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, consegue retroceder no sistema de garantias de direitos, sendo exemplo vivo do quanto o racismo se mantém sem fazer alarde, silencioso e bem acomodado na opressão institucional
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Liderança na luta não violenta pelos direitos civis dos afro-americanos, Martin Luther King foi a pessoa mais jovem a receber o Prêmio Nobel da Paz, aos 35 anos. No não tão longínquo 14 de outubro de 1964, King foi reconhecido por sua atuação em busca de políticas públicas que garantissem direitos, enfrentando o racismo, tendo entre as reivindicações igualdade e justiça racial.
A evidência de que negras e negros, para além de ofensas individuais, também eram submetidos a violência estatal, manifestada na omissão de um Poder Público conivente com a desigualdade, mobilizou notórias ações coletivas. Fazem parte desse contexto o boicote ao transporte público em Montgomery, no Alabama, e a Marcha sobre Washington.
No cenário brasileiro, lembrando sempre que a luta e a resistência negras estiveram presentes já desde a escravização, é inegável a ideia de que a discriminação racial era pauta para o âmbito público e também para o político. Mesmo com a intensa repressão aos movimentos sociais no Brasil nesse mesmo período, militantes negros continuaram reagindo e evidenciando a inexistência de democracia racial por aqui. Nessa linha, tivemos o avanço em torno da denúncia do racismo institucional e as reivindicações por políticas afirmativas de valorização da população negra.
Em um misto de memória seletiva e de conveniência política, no mês do 61º aniversário da honraria pela paz de King, embora não traga uma linha sequer sobre a população negra, o PL 1473 de 2025, recém-aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, consegue retroceder no sistema de garantias de direitos, sendo exemplo vivo do quanto o racismo se mantém sem fazer alarde, silencioso e bem acomodado na opressão institucional. No sistema socioeducativo brasileiro, novamente a sobrerrepresentação negra se manifesta. Dados do Sinase (2024) informam que 72,9% dos adolescentes em restrição e privação de liberdade são negros e 93,4% são meninos cis e trans.
Referido projeto de lei traz, pela via da reformulação do artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma maior duração da internação que, assim, poderá ter até 10 anos. Além disso, não mais se falará em brevidade como princípio orientador da internação que, inclusive, passará a ser reavaliada anualmente e não mais semestralmente. O endereçamento é certeiro, novamente – adolescentes negros serão os maiores afetados com esse pequeno “ajuste” da legislação.
No parecer do Senado, o PL 1473/25 é tido como “conveniente”, “oportuno” e “uma resposta legítima às demandas da sociedade”. Coloca-se ainda como ferramenta apta a corrigir “fragilidades históricas do ECA”, que seria uma legislação “leniente.”
Podendo repercutir sobre gerações que sequer estão hoje nascidas, o PL 1473/25 é uma aposta no punitivismo e no encarceramento, esvaziando o lugar das políticas públicas que asseguram educação, saúde, esporte e convivência comunitária. Além disso, vai frontalmente contra a garantia de direitos, justamente em um momento peculiar em que a anistia a atos golpistas, contra o Estado Democrático de Direito, ainda corre sorrateira em busca de viabilidade. Em tempos de liberdade democrática, é inaceitável que tenhamos espaço para formulações incompatíveis com a Constituição Federal, com o ECA e com o SINASE. O mais completo silêncio sobre o racismo institucional que essa proposição legislativa materializa precisa ocupar também o centro de nossas preocupações. Mesmo com os guris dizendo que chegam lá, imortalizados na voz da saudosa Elza Soares, parece mesmo que estamos dificultando – e muito – essa caminhada. Olha aí!