Floresta e segurança, o tema que não pode ficar para depois
O atual estado de coisas na Amazônia indica a importância de se apontar um enviado ou enviada especial a Belém com expertise e mandato para olhar para a região sabendo da dificuldade de implementar qualquer resolução da COP 30 em territórios conflagrados ou dominados
Manoela Miklos
Pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Renato Sérgio de Lima
Diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da FGV EAESP
As elevadas taxas de homicídios e outros crimes contra a vida na Amazônia brasileira – como os que vitimizam meninas e mulheres – têm relação com uma dinâmica de sobreposição de dinâmicas ilícitas que assolam a região. Alguns desses fluxos têm longa história e são estruturais. Outros são mais recentes e têm caráter conjuntural, mas, caso sejam ignorados, vão se tornar igualmente prevalentes e penetrarão igualmente as estruturas da nossa sociedade.
De um lado, há a violência que guarda conexão com a exploração das commodities da floresta. É o caso da madeira, do ouro, de outros minerais, do pescado e de animais silvestres. Nenhuma delas é ilícita per se, mas práticas ilegais de uso da terra, a extração ilegal de recursos naturais e o trato ilegal de animais fazem da exploração de tais produtos atividades ilícitas. São problemas de longa data: a exploração de commodities em unidades de conservação, assentamentos, acampamentos rurais e em territórios indígenas viabilizam atividades econômicas ilícitas como garimpo ilegal de ouro, o desmatamento, as disputas sangrentas por território. São os crimes ambientais, velhos conhecidos do Estado brasileiro.
De outro, temos a presença cada vez maior do crime organizado na região amazônica. Facções de origem sudestina dedicadas ao narcotráfico hoje fazem parte do dia a dia dos que residem na Amazônia Legal. Elas se impõem às facções locais e grupos que historicamente comandam atividades ligadas ao crime ambiental ou estabelecem relações simbióticas com tais organizações. Interessadas nas rotas para escoamento de drogas e armas de países vizinhos e no varejo dessas substâncias nas cidades brasileiras, facções como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho têm tomado a Amazônia, hoje uma região coalhada de facções – grupos puro-sangue formados pelas facções mencionadas ou grupos menores que guardam filiação com as duas maiores facções do país.
A consolidação da presença de organizações de natureza mafiosa na região, como o PCC e o CV, e sua associação com grupos criminosos locais vêm agravando sobremaneira a situação histórica e estruturalmente trágica da Amazônia Legal, que passa a ser um território estratégico para o tráfico transnacional de drogas. Ampliam-se exponencialmente os produtos ilícitos que circulam pela região e transitam por suas fronteiras. O resultado? A taxa de violência letal na Amazônia se manteve em patamares muito elevados: com taxa de 32,3 mortes a cada 100 mil habitantes, é 41,5% acima da média nacional, considerando apenas os dados de 2023. Estados como Amapá e Mato Grosso seguem, ano após ano, ostentando taxas elevadíssimas de violência letal, sem sinais de melhora. O mesmo pode ser dito da violência de gênero, posto que a taxa de homicídios femininos na Amazônia foi de 4,7 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres, 25% superior à média nacional. Já os feminicídios, embora subnotificados, também se mostram elevados, com taxa de 1,7 morte por 100 mil, 21,4% acima da média nacional.
A expansão das facções criminosas oriundas do sudeste do país e a formação de alianças ou a eclosão de disputas com grupos locais avançam com velocidade. É possível afirmar, a partir de um levantamento conservador, que há presença desses grupos em ao menos 260 municípios da região – o que equivale a mais de 30% do total. Em 176 deles, vemos o monopólio de uma facção; em 84, a presença de dois ou mais grupos em disputa pelo território. Chama atenção na região também a presença de grupos estrangeiros, como o venezuelano Trem de Aragua. Essa organização foi recentemente declarada grupo terrorista pelo governo Donald Trump. Precisamos encarar a verdade: a floresta que o mundo quer ver em pé é o epicentro de uma epidemia de violência capitaneada pela presença cada vez maior de narcotraficantes interessados em suas estradas e rios e em seus residentes, potenciais consumidores. É também cenário onde outras violências alcançam taxas elevadíssimas, como aquela que é perpetrada contra meninas e mulheres. Como cumprir metas relacionadas à justiça climática num território em que não há justiça para vítimas de facções ou vítimas de violência de gênero? Como manter a floresta em pé e falar em bioeconomia se a única economia que prospera em um terço da região é o tráfico de drogas?
Saudamos, evidentemente, a construção institucional desenhada e posta em prática pelo time que está por trás da COP 30, que se avizinha. Em especial, parece-nos interessante o desenho institucional que atribui funções a enviados especiais conectados a temas. Há enviados especiais de direitos humanos e transição justa, de setor privado amazônico, de sociedade civil amazônica e de bioeconomia, dentre outros. Contudo, o atual estado de coisas na Amazônia pedia um enviado ou enviada especial de floresta e segurança. Alguém capaz de olhar para essa camada a mais de dificuldade com a qual convivem os amazônidas – e não apenas. A mesma realidade adversa se verifica se voltamos as atenções para a Pan-Amazônia. Um enviado com expertise e mandato para se debruçar sobre o tema saberia da dificuldade de implementar qualquer resolução da COP 30 em territórios conflagrados ou dominados. Saberia da necessidade de olhar para a presença do crime organizado na Pan-Amazônia, sob pena de combinado algum feito em Belém ter condições de ser cumprido. Saberia quão fundamental é atentar para a segurança pública neste momento em que precisamos compreender a realidade dos territórios para, então, transformá-la.
Falta ao time da COP 30 um olhar cuidadoso para a segurança pública. O tema se perde entre ambientalistas que creem que o tema não lhes cabe e deve ser resolvido com comando e controle e operadores e especialistas da segurança pública que percebem os ambientalistas como profissionais naïfs que, sem perceber, advogam pela exportação da guerra às drogas e outros modelos falidos de combate ao crime organizado para a Pan-Amazônia. Enquanto isso, o narcotráfico segue avançando e tomando para si a governança do território.
Um enviado especial teria sido o sinal necessário de que este é um tema relevante. Teria comunicado que a cúpula da COP compreende o que está em jogo, sabe que é preciso priorizar o tema. Teria sido capaz de operar na fissura entre ambientalistas e profissionais da segurança pública e ser um conduíte. Construir nexo onde há abismo. Propor as costuras necessárias para que campos que hoje mal se tocam se vissem como vasos comunicantes. Sem essa figura e sem indicações por parte dos dirigentes da COP 30 de que o tema da presença do crime organizado na região é prioritário, e com a possibilidade de que produza consequências imprevisíveis se desconsiderado, corremos o risco de todas as costuras feitas pelos demais enviados e enviadas especiais terem sido em vão.