Nicolás Cabrera
Doutor em Antropologia e Professor Substituto na UFRJ e pesquisador do Observatório Social do Futebol
Raquel Sousa
Doutoranda em Ciências Sociais na UERJ e pesquisadora do Observatório Social do Futebol
João Vitor Sudário
Mestrando em Geografia na UFF e pesquisador do Observatório Social do Futebol
Paula Barreiro
Graduanda em Ciências Sociais na UERJ e pesquisadora do Observatório Social do Futebol
Vitória Silva
Graduanda em Ciências Sociais na UERJ e pesquisadora do Observatório Social do Futebol
A maioria dos torcedores latino-americanos que vêm ao Brasil acompanhando seus times ou seleções é recebida, principalmente, pelas forças de segurança locais, quase sempre da mesma maneira.
Segundo um levantamento feito a partir da cobertura midiática, o Observatório Social do Futebol registrou, entre 2023 e 2025, oito partidas com a ocorrência de confrontos entre forças de segurança e torcedores, sendo sete envolvendo clubes e uma em jogo entre seleções. Destacamos a final da Copa Libertadores de 2023, disputada por Fluminense e Boca Juniors, o jogo das eliminatórias da Copa do Mundo entre Brasil e Argentina e a semifinal de Libertadores entre Botafogo e Peñarol, no ano passado. Sabemos que há mais casos, pois nem toda a violência que ocorre em uma partida de futebol vira manchete de jornal.
Dentre os motivos que explicam a recorrência do fenômeno, é importante observar as ações das forças de segurança brasileiras e as diferentes reações que desencadeiam na opinião pública local e estrangeira. A tônica do debate se coloca a partir do uso exacerbado da repressão como característica brasileira.
É preciso pensar a repressão como a última opção. Antes da “cacetada” existem a inteligência e a prevenção. O emprego da força deve ser a etapa final do protocolo de atuação em eventos. No Brasil, parece ser a primeira.
Esse fato provoca reações distintas na opinião pública local e internacional. No Brasil, não parece despertar muitas críticas. O motivo dessa tolerância mereceria uma pesquisa mais profunda e um texto mais robusto. Por enquanto, podemos levantar algumas hipóteses. Uma delas é reconhecer que existe no Brasil uma tradição policial que naturaliza uma repressão que já se tornou costume, visto que estamos falando de uma das forças de segurança mais violentas e letais do mundo.
A violência também é legitimada socialmente pelos torcedores e cidadãos brasileiros ao comemorarem o punitivismo contra os demais torcedores. Podemos observar os argumentos em três pontos: o orgulho da reputação violenta da polícia, a ideia do revanchismo por aqueles que viajam para fora do país e a associação dos torcedores estrangeiros com o racismo e a perturbação da ordem social.
Sabemos que os episódios de racismo contra os torcedores brasileiros não são novidade, visto que em diferentes jogos internacionais torcedores estrangeiros imitam macacos e publicam comentários racistas em redes sociais. Aquilo que pode parecer provocação “normal” para alguns, devido à falta de falta de amplo debate, consciência racial e tipificação penal, é, para a maioria dos brasileiros, um crime extremamente ofensivo. Como reação e em consequência, brasileiros e brasileiras praticam violências como justificativas antirracistas.
Dois problemas surgem aqui: primeiro, responder à violência com mais violência acelera uma espiral incontrolável; segundo, é muito perigoso estigmatizar uma nação inteira sem distinção. Se todo estrangeiro é tratado como racista, o legítimo antirracismo brasileiro resvala para uma perigosa xenofobia. O resultado é que todos se sentem vítimas, ninguém assume a própria violência e cada um legitima a sua própria agressão.
Outro ponto a considerar é o papel da mídia. Seja no Brasil, na Argentina ou no Uruguai, a mídia tradicional e as contas de redes sociais especializadas nesse tipo de cobertura produzem e reproduzem uma visão tendenciosa. Dizem o que seu público quer ouvir: que o violento é sempre o outro. A imprensa brasileira só destaca argentinos racistas; a imprensa argentina ou uruguaia só exibe a violência policial brasileira. Nenhuma delas mente, mas ambas são incompletas, levando a interpretações tão tendenciosas quanto reconfortantes para quem as consome. Podemos destacar, na imprensa brasileira, como a responsabilidade pelos atos violentos é atribuída às torcidas, enquanto a repressão policial é retratada como uma intervenção necessária. Com construções de texto que empregam “precisou intervir” e “conter”, os veículos de comunicação legitimam a violência policial, embora citem o uso de gás de pimenta, cassetetes e balas de borracha. Nesse contexto, a ação policial é naturalizada, além de retratada como desejável e necessária.
Até aqui foram abordadas as ações dos atores que possuem mais destaque na perpetuação das violências nesse campo. Todavia, há personagens invisibilizados que devem ser responsabilizados: os organizadores (CONMEBOL, CBF e federações), que por vezes alteram as regras de acesso, permitindo ou não que bandeiras sejam introduzidas no interior dos estádios, por exemplo, o que afeta o esquema de seguridade; os clubes, legalmente responsáveis pela segurança, que não agem com transparência; os torcedores; e o Estado, que continua sem implementar políticas públicas de prevenção e mediação de conflitos, atuando de modo reativo, permanecendo incapaz de alterar esse cenário a médio e longo prazo.
Para concluirmos, é importante encararmos a situação com a devida responsabilidade que ela merece, visto que grande parte dos conflitos são tanto previsíveis quanto evitáveis. Do contrário, continuaremos a lamentar os infortúnios indesejáveis que tensionam a violência policial, torcedores e os discursos midiáticos.