Interrupções do calendário escolar por violência crescem 245,6% entre 2021 e 2023
As interrupções de aulas refletem não apenas respostas imediatas a episódios de violência extrema, mas a convivência cotidiana com a insegurança, marcada pela disputa entre grupos armados e pela lógica da repressão violenta
Cauê Martins *
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e pesquisador sênior no Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No ano de 2023, a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apresentou e analisou os dados do “Questionário do diretor” do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) 2021, um componente majoritariamente subjetivo da avaliação – publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), naquele ano – que permite captar a percepção de gestores a respeito de diversos aspectos do cotidiano de suas escolas, incluindo a violência. Embora o foco principal do SAEB seja a aferição de desempenho acadêmico, a dimensão contextual apreendida por esse questionário se tornou, nos últimos anos, uma das principais fontes de monitoramento da sensação da segurança e do clima escolar no país.
Uma das principais inquietações que nos mobilizaram na divulgação daquela edição do Anuário, há dois anos, era entender como o contexto de ataques de violência extrema contra escolas – 10 ataques consumados em 2022 e 15 em 2023[1] – impactaria a edição do SAEB que iria a campo em 2023, uma vez que os dados daquela edição se referiam a 2021. Os dados que apresentamos a seguir confirmam algumas das impressões que tínhamos em 2023, mas também, ajudam a dimensionar a amplitude das violências ocorridas na escola (e contra a escola) e a desmistificar preconceitos sobre o fenômeno.
Em 2023, 3,6% das escolas brasileiras cujos diretores(as) responderam ao questionário do SAEB informaram que o calendário escolar foi interrompido durante vários dias devido a episódios de violência. Trata-se de um crescimento expressivo em relação a 2021, quando apenas 1% das escolas reportou esse tipo de paralisação, ou seja, o percentual aumentou 245,6% no período analisado.
Os episódios, ameaças e tentativas de ataques de violência extrema ocorridos em 2023 certamente impactaram nessa variação ascendente do fenômeno neste período. Uma pesquisa realizada pelo Inep e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2023 estimou que 12,6% das escolas brasileiras relataram ter sido alvo de ameaça ou tentativa de ataque nos 12 meses anteriores à coleta dos dados.[2] Em outras palavras, a cada oito escolas do país, uma conviveu com a iminência de uma violência de grande repercussão, ainda que não consumada.
Nesse contexto, ao analisarmos a distribuição dessa interrupção nas Unidades da Federação, observamos que esse percentual aumentou em todas elas, em provável consequência ao contexto de pânico disseminado naquele período. No entanto, ao examinarmos em detalhe esses dados, percebemos que se trata de um fenômeno multicausal que extrapola o impacto dos episódios de violência extrema.

Destaca-se à primeira vista o percentual de escolas do estado do Rio Grande do Norte que reportaram interrupção do calendário por episódios de violência: 29%, aproximadamente oito vezes superior à média nacional. Neste caso, além das consequências das ameaças de ataques que recaíram sobre as escolas de todas as regiões do país, o estado conviveu com uma série de ações criminosas específicas. Em março de 2023, 19 de seus municípios foram alvo de ações coordenadas pela facção que domina o crime organizado no estado, resultando em tiroteios, toques de recolher, suspensão de aulas e interrupção temporária de serviços públicos essenciais, como foi o caso do sistema de transporte.
Em territórios em que há disputas entre o crime organizado, bem como políticas de segurança baseadas em sua repressão armada, a proporção de escolas que paralisaram o calendário em 2023 prossegue, como observado em 2021, em patamar elevado, como é o caso do estado do Rio de Janeiro (8,7%). Na Bahia (5,1%) e em estados da Amazônia o fenômeno tende se relacionar a lógica semelhante.
Por outro lado, o notável percentual registrado em Santa Catarina (7,7%) relaciona-se ao ataque à instituição de educação infantil ocorrido na cidade de Blumenau, em abril de 2023. Portanto, embora possamos atribuir o crescimento geral no percentual de interrupções do calendário escolar das escolas brasileiras às ameaças e episódios de violência extrema que instilaram pânico e induziram a adoção de medidas preventivas e emergenciais mais drásticas, é necessário sublinhar a centralidade e magnitude do impacto do crime organizado e das políticas para seu enfrentamento no cotidiano das escolas do país. As disputas e a repressão armada ao crime organizado foram as principais responsáveis pela interrupção do ano letivo nos dois estados com os maiores percentuais de escolas que paralisaram seus calendários em 2023.
É válido ponderar, todavia, como a estabilidade nos percentuais da percepção de diretores sobre a ocorrência de situações de “atentado à vida” em suas escolas denota a infrequência da consumação de violência letal, ainda que tentada, contra membros da comunidade escolar. Em 2023, as equipes gestoras de 95,4% das escolas respondentes do SAEB informaram que não ocorreu nenhuma situação de atentado à vida em suas respectivas unidades escolares. Quando comparamos com a informação de 2021, quando 96,1% das escolas informaram que nunca ocorrera fenômeno do tipo naquele ano, averiguamos que uma variação da grandeza de 0,7 ponto percentual aponta para um cenário em que houve, no biênio analisado, baixo impacto substancial. Contudo, mesmo que ainda incipiente, é importante o alerta para os riscos reais que muitas escolas enfrentam. Trata-se de uma percepção que precisa ser acompanhada ao longo dos próximos ciclos avaliativos do SAEB, para verificar se estamos diante de uma leve flutuação ou no início de uma tendência mais estrutural.
Um indicador de que a relação com entornos submetidos a violência armada não se agravou de 2021 a 2023 é a percepção da ocorrência de tiroteio ou bala perdida na escola. Em 2021, 98% das escolas informaram que tal situação nunca ocorrera, ao passo que, em 2023, esse percentual variou ligeiramente para 98,2%. O estado que ainda demanda atenção, visto a gravidade do fenômeno, é o Rio de Janeiro, onde 13,4% das escolas informaram a ocorrência de tiroteio ou bala perdida. Um estudo aprofundado sobre o impacto da violência armada nas escolas localizadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro – realizado pelo Instituto Fogo Cruzado, GENI/UFF, CERES/IESP/UERJ e Unicef – mapeou “eventos de violência armada aguda nas imediações” de 46% das escolas do Grande Rio no ano de 2022.[3] As regiões mais afetadas foram a Zona Norte e a Baixada Fluminense, com destaque também para o Centro da Capital. Tais dados evidenciam que o risco não é uniforme: escolas inseridas em territórios sob disputa territorial ou com presença policial ostensiva são mais vulneráveis a eventos de violência armada, muitas vezes vinculados a operações das forças de segurança do estado.
Outro conjunto de informações que o SAEB 2023 nos fornece diz respeito a violências física, psicológica e simbólica que ocorrem no ambiente escolar. Episódios de lesão corporal, assédio sexual, bullying, cyberbullying, porte de armas e discriminação são algumas das manifestações dessa dimensão intraescolar da violência.
Entre 2021 e 2023, os dados do SAEB indicam um aumento expressivo na percepção de ocorrência de lesão corporal nas escolas brasileiras. A proporção de diretores que afirmaram que tais episódios nunca aconteceram variou de 93,8% para 78,3%. Para o ano de 2023, alguns estados apresentaram percentuais bem acima da média nacional nas categorias “muitas vezes” e “sempre”, como São Paulo (2,4%) e Distrito Federal (3,1%).
Analogamente, observa-se em 2023 um aumento expressivo na percepção de ocorrência de roubo ou furto em comparação com 2021. A proporção de diretores que afirmaram que tais eventos nunca ocorreram em suas escolas caiu de 81,2% para 73,4%. Embora o crescimento nas ocorrências mais frequentes tenha sido leve, o avanço da percepção de casos pontuais indica uma ampliação da sensação de vulnerabilidade patrimonial nas instituições. Notam-se em algumas unidades da federação percentuais significativamente acima da média nacional, como no Distrito Federal e no Mato Grosso do Sul.
Para além da violência física e patrimonial, observa-se um crescimento relevante na percepção de ocorrência de assédio sexual nas escolas. A proporção de diretores que afirmaram que esse tipo de violência nunca ocorreu em suas escolas caiu de 97,2% em 2021 para 92% em 2023.
Esse quadro de crescimento das diferentes formas de violência escolar se repete também quando analisamos a percepção dos(as) diretores(as) sobre práticas de intimidação sistemática, como mostram os dados a seguir. De acordo com o SAEB 2023, aproximadamente duas em cada três escolas brasileiras relataram ter vivenciado episódios de bullying ao longo do ano letivo. Em 2021, esse percentual era de 44%. Ainda que parte desse crescimento se deva à retomada plena das aulas presenciais após a pandemia, a mudança de 23,6 pontos percentuais na proporção de escolas que afirmam nunca ter registrado bullying (de 56% em 2021 para 32,5% em 2023) sugere também um avanço institucional na identificação do fenômeno, que pode estar associado ao crescimento da mobilização nacional em torno do tema.

A pesquisa mostra ainda que, em 2023, 8,9% dos(as) diretores(as) afirmaram que o bullying ocorre “muitas vezes” em suas escolas. A distribuição territorial dessas percepções é marcada por contrastes. No Distrito Federal, São Paulo e Espírito Santo, por exemplo, os percentuais de ocorrência “muitas vezes” ultrapassam os 10%. Já em estados do Nordeste, como Maranhão, Paraíba e Piauí, mais de 1/3 das escolas alegam nunca ter presenciado bullying.
Outro fator preocupante diz respeito ao porte de armas por estudantes, que registrou crescimento nas percepções dos gestores no SAEB 2023. Ainda que em proporção relativamente baixa (variando entre 0,5% e 2,5% conforme a região), trata-se de um alerta importante, pois se soma à intensificação de discursos violentos, ao aumento da cultura armamentista e à circulação de conteúdos de ódio nas redes sociais. O dado pode ser lido como indicador de tendências para investigação mais aprofundada e acompanhamento contínuo.
É importante também destacar as estruturas institucionais de prevenção e resposta a violências. Nesse sentido, 93,6% das escolas afirmam ter desenvolvido, em 2023, projetos específicos para o “combate à violência (física, verbal, bullying, dentre outros)”.
Os ataques de violência extrema às escolas brasileiras, que se intensificaram entre 2022 e 2023, tornaram inadiáveis as respostas públicas para o enfrentamento do problema. Nesse cenário, a criação do Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (SNAVE) representou uma iniciativa acertada do governo federal para induzir políticas de monitoramento e fortalecer a articulação federativa. Instrumento central de sua implementação, o Programa Escola que Protege (ProEP), coordenado pelo Ministério da Educação, busca mobilizar as redes de ensino e os demais entes federativos na elaboração de Planos Subnacionais de Prevenção e Enfrentamento das Violências nas Escolas, estruturando mecanismos permanentes de prevenção, monitoramento e resposta qualificada a incidentes. Desde 2025, o ProEP tem disponibilizado materiais e cursos gratuitos sobre justiça restaurativa, enfrentamento a ataques violentos e promoção da cultura de paz, voltados a educadores, gestores escolares e profissionais das redes de proteção. Os efeitos dessa prioridade assumida pelo Estado brasileiro na formulação de políticas públicas para o acompanhamento e o enfrentamento da violência escolar já se refletem na redução dos ataques consumados registrados em 2024 e 2025. Nesse mesmo sentido, destacam-se os esforços da Polícia Federal e do Ministério da Justiça e Segurança Pública em ações de investigação e inteligência, que têm logrado frustrar ataques ainda na fase preparatória, especialmente no ambiente digital.
Os dados do SAEB aqui apresentados reforçam a necessidade de uma interpretação multicausal para compreender o crescimento das interrupções do calendário escolar por episódios de violência. É inegável que os ataques de violência extrema, por suas características brutais e pela comoção social que provocam na opinião pública, geram um ambiente de pânico que afeta diretamente as decisões das comunidades escolares e das autoridades. Contudo, como atestam os casos do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro, os efeitos das dinâmicas criminais que estão além dos muros das escolas e repercutem no entorno e nos territórios em que se localizam têm um peso ainda maior e mais duradouro sobre a rotina das escolas. As interrupções de aulas, nesses contextos, refletem não apenas respostas imediatas a episódios de violência extrema, mas a convivência cotidiana com a insegurança, marcada pela disputa entre grupos armados e pela lógica da repressão violenta. Por isso, é fundamental que as políticas públicas voltadas ao enfrentamento das violências nas escolas considerem esse conjunto de fatores, evitando transformar os ataques de violência extrema em uma espécie de panaceia que ofusca as demais formas de violência, tanto aquelas que ocorrem dentro das escolas quanto as que se impõem a partir dos territórios em que elas estão inseridas.