Estudos críticos de policiamento e desafios para as polícias na contemporaneidade
O estudo crítico das corporações não é mera retórica acadêmica, mas um clamor pela constituição de organizações capazes de policiar sociedades livres com alinhamento aos direitos humanos e ao Estado democrático de direito
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial civil no Distrito Federal. Associado do FBSP. Professor substituto no IPOL/UnB
As polícias são instituições que despertam constante atenção da sociedade. Desde Robert Peel, no século XIX, com seus princípios da polícia moderna, até os dias de hoje, elas são vistas como instrumentos cujo ideal de existência é a prevenção do crime e da desordem. Assim, aspectos preventivos, voltados a evitar delitos, e repressivos, que se destinam a responsabilizar autores criminais, fazem parte do rito policial. No entanto, as polícias não são exclusivamente agências de enfrentamento da criminalidade, pois podem atuar também como armas de controle sociopolítico. Diante desses papéis, as corporações são amadas, temidas e até odiadas, o que suscita a necessidade de se conhecer tais atores. É nesse contexto que se inserem os estudos críticos de policiamento, elaborados por quem procura analisar e compreender as estruturas e as práticas da polícia.
Em geral, os estudos críticos de policiamento agregam diversas pesquisas com o objetivo de refletir sobre as polícias na contemporaneidade. Nesse campo, por exemplo, destaca-se a recente obra Handbook of Critical Policing Studies (2025)[i], que apresenta reflexões desenvolvidas por policiais pesquisadores e acadêmicos. No conjunto, os autores criticam o mito de Peel como “pai do policiamento moderno” apontando que essa narrativa ignora longa trajetória de controle social e outras formas de policiamento. Diante disso, pesquisadores refutam o ideal de Peel do “policiamento por consentimento”, visto que desconsidera o uso frequente de táticas quase bélicas e impositivas no âmbito doméstico. A obra busca delinear o campo dos estudos críticos de policiamento em três grandes linhas de pesquisa: reformismo, redistribuição e abolicionismo.
No reformismo, considera-se que a polícia pode ser melhorada, logo aborda temas como corrupção, uso excessivo da força, discriminação e ineficácia. O objetivo é aperfeiçoar o trabalho e a estrutura das organizações policiais, sem substituí-las ou suprimi-las. Na redistribuição, questiona-se a eficácia das reformas estruturais na prevenção do crime, sugerindo a realocação de recursos financeiros e humanos das polícias para serviços aliados, como saúde mental, habitação e organizações comunitárias. Essa perspectiva busca reduzir a dependência do sistema de justiça criminal e é vista como uma fronteira entre a reforma e a substituição. Por último, o abolicionismo defende a criação de novos sistemas, práticas e instituições que substituam a polícia estatal. Pesquisadores abolicionistas buscam construir alternativas comunitárias que previnam danos em vez de apenas reagir a eles.
Em termos temáticos, a obra supracitada apresenta estudos que analisam a polícia como instrumento de lei e ordem, aproximando-a do sistema político. Considera, ainda, o papel histórico das corporações na manutenção do controle, que em muitos casos reforçou desigualdades sociais, econômicas e raciais. Ressalta-se, por exemplo, que o policiamento moderno possui vínculos com colonização, racismo estrutural e disciplina do trabalho no capitalismo. Além disso, aponta-se que a função policial não se limita ao combate ao crime, mas também à regulação de comportamentos e espaços sociais. Nota-se que os estudos também analisam como a violência policial se manifesta de forma seletiva, atingindo especialmente grupos marginalizados. Tais temas são discutidos em perspectiva global, a fim de compreender o policiamento em diferentes localidades e realidades.
No Brasil, há longa tradição de estudos críticos sobre as polícias, dado que elas geralmente representam instituições de tensão entre sociedade civil e Estado. Nesse sentido, destaca-se particularmente a obra publicada na revista da “Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Rio de Janeiro (OAB-RJ)”, edição nº 22, de julho de 1985, intitulada A Instituição Policial. O trabalho foi coordenado pela socióloga Julita Lemgruber e contou com textos pioneiros de Marcos Luiz Bretas, Antônio Luiz Paixão, Maria Victória Benevides, Roberto Kant de Lima, entre outros. Na época, a coletânea alertava que muito se falava sobre a polícia, mas pouco se pesquisava e escrevia sobre ela. A revista analisou as corporações sob os prismas da história, do direito, da psicologia e das ciências sociais. Por exemplo, no artigo de Antônio Paixão, A Distribuição de Segurança Pública e Organização Policial, o autor já refletia sobre o mito de Peel, os dilemas da polícia burocratizada moderna e, especialmente, as contradições do modelo quase militar adotado pelas organizações brasileiras.
Também merece menção a série de livros Polícia e Sociedade, da editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), que traduziu obras clássicas de reflexão sobre as polícias no início dos anos 2000[ii]. Vale salientar que boa parte da literatura consolidada de estudos de críticos de policiamento era de origem estrangeira, assim, a tradução para o português realizada pela editora da USP ampliou o acesso a tal conhecimento. Destaca-se dessa série, por exemplo, a obra O Que Faz a Polícia, do sociólogo francês Dominique Monjardet, que explica as relações da polícia com a sociedade sob as dimensões institucional, organizacional e profissional. Fica claro na obra que a polícia não é apenas uma força ou instrumento, mas que “toda polícia é, em primeiro lugar, uma política para a polícia”.
Importa esclarecer que os estudos críticos de policiamento não se confundem com as ciências policiais. Enquanto os primeiros partem de reflexões sobre as instituições em suas relações com Estado e sociedade civil, as segundas se referem a um saber endógeno, com ênfase na reprodução de conhecimentos e práticas das próprias corporações. Os estudos críticos têm perspectiva interdisciplinar e plural, ao passo que as ciências policiais apresentam viés mais corporativista. A diferença elementar está na avaliação crítica da morfologia e do comportamento das instituições nas sociedades contemporâneas.
Apesar de sua relevância teórica e prática, os estudos críticos de policiamento, em geral, não são bem-vistos por setores conservadores da sociedade e, inclusive, pelas próprias corporações. Muitas vezes, são encarados como manifestações de atores progressistas que teceriam críticas infundadas às organizações e aos profissionais de segurança pública. Por essa razão, particularmente no Brasil, dificilmente as corporações se apropriam desses estudos. Aliás, há tendência de insulamento das polícias em seus próprios saberes e práticas, o que é reforçado nos processos de formação policial e ao longo do exercício da profissão.
Não obstante, no Brasil, onde as polícias foram estruturadas em normas e valores autoritários, os estudos críticos são fundamentais para refletir sobre essas agências. Ora, mesmo em contexto democrático, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), cerca de 40% dos policiais não consideraram os atos de 8 de janeiro de 2023 atentatórios à democracia[iii], o que evidencia a utopia autoritária das corporações. Ademais, temas como violência policial, seletividade nas ações e baixa eficácia no enfrentamento da criminalidade persistem no sistema policial. Destarte, o estudo crítico das corporações não é mera retórica acadêmica, mas um clamor pela constituição de organizações capazes de policiar sociedades livres com alinhamento aos direitos humanos e ao Estado democrático de direito.
Enfim, os estudos críticos de policiamento oferecem uma perspectiva indispensável para compreender a função, as contradições e os limites das instituições policiais na contemporaneidade. Ao problematizar sua relação com poder e violência, esses estudos evidenciam que o policiamento não pode ser reduzido a uma simples função de combate ao crime, mas deve ser entendido como fenômeno político e social. Assim, ao mesmo tempo em que revelam as insuficiências dos modelos policiais, também abrem espaço para pensar alternativas democráticas, inclusivas e eficazes de segurança pública, reafirmando sua relevância no debate acadêmico e social sobre a polícia.