Controle e resistência: a presença das mulheres no universo do crime organizado
As mulheres ligadas a integrantes desses grupos muitas vezes precisam de autorização para romper vínculos, vivem sob normas rígidas de comportamento e podem sofrer punições severas, que vão da exclusão social à violência física
Erir Ribeiro Neto
Mestrando em Segurança Pública (UFPA). Delegado de Polícia Civil do Estado do Pará, lotado na Delegacia de Repressão a Facções Criminosas
Alethea Maria Carolina Sales Bernardo
Professora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública (PPGSP/UFPA). Associada plena do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Escrivã de Polícia Civil do Estado do Pará
Edson Marcos Leal Ramos
Professor doutor do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública (PPGSP/UFPA). Associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
O crescimento da participação feminina no crime organizado brasileiro é um fenômeno que desafia tanto a segurança pública quanto os estudos de gênero. Nas últimas duas décadas, a população carcerária feminina aumentou consideravelmente, colocando o Brasil entre os países com maior encarceramento feminino no mundo. A maior parte dessas prisões está associada ao tráfico de drogas, que responde por aproximadamente 60% das condenações.
Esse contexto evidencia como as facções criminosas encontraram nas mulheres um fator estratégico de expansão. Não se trata apenas de laços afetivos ou circunstâncias ocasionais, mas de um processo estrutural de incorporação feminina às dinâmicas criminais. Usada metaforicamente para indicar uma categoria de gênero que deslegitima a mulher, a forma Pink Belt, escolhida por alguns autores para se referirem ao fenômeno, traduz justamente esse movimento de participação ativa, porém em funções menos expressivas como logísticas, financeiras e até disciplinares dentro das organizações.
Outro aspecto que merece atenção é o papel das mulheres no fluxo econômico e comunicacional das facções. Elas costumam atuar no transporte de drogas e armas, na gestão de recursos financeiros e na manutenção de contatos com membros presos. A inserção em funções de cuidado, como logística, comunicação e administração reforça a associação histórica entre feminilidade e suporte, ao mesmo tempo em que sustenta a engrenagem do crime organizado. Trata-se de um paradoxo: ao mesmo tempo em que são subordinadas, as mulheres tornam-se indispensáveis à sobrevivência das facções.
Contudo, a despeito desse protagonismo crescente, as mulheres continuam submetidas a relações de subordinação e controle, reflexo da reprodução da lógica patriarcal no interior das organizações criminosas. As facções regulam a vida privada, incluindo os relacionamentos afetivos, impondo normas rígidas que podem levar a consequências severas, desde a exclusão de redes sociais até a aplicação de violência física extrema. Esse controle deliberado evidencia que a violência de gênero não é um efeito colateral, mas um mecanismo estruturado de dominação e disciplinamento dos corpos femininos.
Os sistemas próprios de regulação da vida privada atuam inclusive nos relacionamentos afetivos. As mulheres ligadas a integrantes desses grupos muitas vezes precisam de autorização para romper vínculos, vivem sob normas rígidas de comportamento e podem sofrer punições severas, que vão da exclusão social à violência física. Essa dimensão mostra que a violência de gênero não é apenas um efeito colateral do crime organizado, mas um mecanismo deliberado de controle simbólico e disciplinador sobre os corpos femininos.
No que se refere à imposição de condutas e normas comportamentais, a análise documental de inquéritos policiais da Delegacia de Repressão a Fações Criminosas do Pará revelou a existência de salves geral, uma normativa da facção direcionada a todos que estão submetidos às suas regras, seja por integrarem o grupo, seja por viverem em territórios sob seu domínio. Essas normas facciosas estabelecem obrigações específicas às mulheres vinculadas ao crime organizado, abrangendo desde o modo de se vestir em presídios até o conteúdo publicado em redes sociais. Não foi identificada, contudo, nenhuma normativa equivalente direcionada aos homens.
A dinâmica também envolve a culpabilização da vítima, quando a sociedade responsabiliza as mulheres por sua própria vitimização, especialmente em relação a escolhas afetivas que envolvem homens identificados como criminosos. Esse processo reforça estereótipos de gênero e legitima a continuidade da violência, ao mesmo tempo em que mantém invisíveis as estruturas de poder e desigualdade que sustentam essas relações. A compreensão do fenômeno, desse modo, exige um olhar crítico sobre como gênero, hierarquia e violência se entrelaçam dentro das facções.
Esse quadro exige uma abordagem crítica das políticas criminais. O enfoque tradicional, centrado na punição, tem aprofundado o ciclo de encarceramento sem oferecer respostas eficazes. A repressão isolada apenas fortalece os mecanismos de recrutamento das organizações, que se alimentam justamente da exclusão social e da vulnerabilidade econômica. Pensar alternativas passa necessariamente por reconhecer a interseção entre gênero, desigualdade e criminalidade, o que contribuiria para a construção de políticas que transcendam o viés punitivista e incorporem prevenção, inclusão social e justiça restaurativa.
O avanço das facções na Amazônia Legal e em outras regiões do país não pode ser compreendido sem esse olhar interseccional. As mulheres não são apenas coadjuvantes ou vítimas passivas, mas atrizes que, dentro de estruturas assimétricas, desempenham papéis fundamentais. Reconhecer essa realidade é um passo crucial para repensar o enfrentamento ao crime organizado em uma perspectiva que una segurança pública, direitos humanos e igualdade de gênero.