A violência como mensagem: como o PCC usa execuções para projetar poder e desafiar o Estado
Pela sua audácia e pelo perfil da vítima, o assassinato do ex-delegado Ruy Ferraz Fontes não pode ser visto de forma isolada. Tudo indica que ele se insere em uma estratégia calculada e multifacetada, na qual a facção utiliza a violência extrema não como um fim em si mesma, mas como uma sofisticada ferramenta de comunicação
Roberto Uchôa
Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
A cena, de uma brutalidade cinematográfica, desenrolou-se em plena luz do dia no litoral paulista. Uma perseguição em alta velocidade, um SUV forçando um carro contra um ônibus, e então, o ato final: três homens descem armados com fuzis e disparam mais de 20 vezes contra o motorista encurralado. O alvo não era um cidadão comum. Era Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, um dos mais notórios e persistentes inimigos do Primeiro Comando da Capital (PCC). Embora a autoria do crime ainda esteja sob investigação oficial, o modus operandi e o histórico da vítima carregam o que especialistas classificam como a assinatura de um “crime de máfia”, apontando fortemente para a facção. A execução se desenhou como um espetáculo de poder, uma provável declaração de guerra simbólica e o que pode ser o ponto culminante de uma longa e sangrenta trajetória de enfrentamento entre a organização criminosa e o Estado.
Este ato, pela sua audácia e pelo perfil da vítima, não pode ser visto de forma isolada. Tudo indica que ele se insere em uma estratégia calculada e multifacetada, na qual o PCC utiliza a violência extrema não como um fim em si mesma, mas como uma sofisticada ferramenta de comunicação. Cada execução, cada atentado, é uma mensagem cuidadosamente elaborada, destinada a intimidar inimigos, disciplinar traidores e, acima de tudo, projetar uma imagem de onipotência, afirmando que ninguém, seja um juiz, um promotor, um senador ou um delator, está fora do alcance do “Partido do Crime”. A morte de Fontes, somada à recente e igualmente audaciosa execução do delator Vinicius Gritzbach no Aeroporto de Guarulhos, com a participação de um policial militar da ativa, lança um desafio direto à soberania do Estado. A questão que se impõe é se a resposta estatal será mais um capítulo no ciclo vicioso de retaliação e abuso, ou se representará uma mudança de paradigma, focada na inteligência e na desarticulação financeira que podem, de fato, enfraquecer a organização.
A doutrina da violência: de manifesto carcerário a estratégia corporativa
Para compreender a lógica por trás da violência do PCC, é preciso voltar às suas origens. Fundada em 1993, no rescaldo do Massacre do Carandiru, a facção nasceu com um discurso de “luta contra a opressão” do sistema prisional. Seu estatuto original é um manifesto que enquadra a violência contra o Estado como uma guerra justa, uma resposta legítima às injustiças sofridas pela massa carcerária. Essa narrativa ideológica, que promete “Liberdade, Justiça e Paz”, fornece o arcabouço moral que justifica, aos olhos de seus membros, os atos mais brutais.
Contudo, a organização evoluiu. A liderança de Marco Willians Herbas Camacho, o “Marcola”, marcou uma transição de uma mentalidade de confronto direto para uma abordagem mais estratégica e empresarial. Os “Crimes de Maio” de 2006 foram um ponto de inflexão. Naquela ocasião, em retaliação à transferência de suas lideranças para um presídio de segurança máxima, o PCC paralisou São Paulo com uma onda de ataques que resultou em 564 mortes. Foi a demonstração máxima de seu poder de fogo e mobilização. No entanto, a repressão estatal que se seguiu, igualmente violenta e muitas vezes indiscriminada, causou severos prejuízos financeiros à facção, desarticulando rotas de tráfico e operações.
A lição foi aprendida: a guerra total era economicamente insustentável. Especialistas apontam que, após 2006, o PCC recalibrou sua estratégia. A violência indiscriminada deu lugar a execuções cirúrgicas e de alto valor simbólico. O objetivo deixou de ser paralisar a sociedade e passou a ser enviar mensagens aterrorizantes a alvos específicos, minimizando a disrupção dos lucrativos negócios da facção. A espetacularização da força continuou sendo fundamental, mas tornou-se mais seletiva e performática. A violência deixou de ser apenas um ato de guerra para se tornar, também, uma ferramenta de governança e marketing do terror.
Uma galeria de alvos: a mensagem por trás de cada morte
A lista de alvos do PCC ao longo dos anos revela a precisão dessa nova estratégia. Cada ataque é direcionado a indivíduos que representam uma ameaça direta à estrutura de poder, às finanças ou à disciplina interna da organização.
O primeiro grande recado foi enviado ao Judiciário em 2003, com a execução do juiz corregedor Antonio José Machado Dias, o “Machadinho”, em retaliação ao tratamento rigoroso que impunha aos líderes presos. Marcola foi condenado como mandante, estabelecendo o precedente de que nenhum pilar do Estado estava imune. Anos depois, o promotor Lincoln Gakiya, especializado em desvendar a complexa teia financeira da facção, tornou-se um alvo persistente, especialmente após articular a transferência de Marcola para o sistema penitenciário federal em 2019, uma medida que causou “muito prejuízo financeiro” ao grupo. A mesma transferência colocou o então ministro da Justiça, Sergio Moro, na mira, culminando na descoberta de um plano complexo para sequestrar e assassinar o hoje senador e sua família.
O assassinato de Ruy Ferraz Fontes, em setembro de 2025, parece representar a conclusão de um projeto de vingança de longa data. Fontes não era apenas um policial; ele era o arquiteto do indiciamento de toda a cúpula do PCC em 2006, um inimigo histórico. O fato de ele ter sido morto quando já estava aposentado da linha de frente, atuando como secretário municipal, envia uma mensagem inequívoca, independentemente da autoria final: para seus inimigos, não há anistia. Aposentadoria não confere imunidade, e a memória de organizações como o PCC é longa.
Tão potente quanto foi a execução de Antônio Vinicius Gritzbach, em novembro de 2024. Ex-colaborador que se tornou delator, Gritzbach foi fuzilado na área de desembarque do Aeroporto de Guarulhos, um dos mais movimentados do país. A escolha do local foi uma demonstração de audácia e impunidade absolutas. A mensagem era clara: a traição é punida com a morte, não importa onde o alvo esteja.
O detalhe mais assustador, no entanto, foi a identidade de um dos atiradores: um cabo da ativa da Polícia Militar. Gritzbach, ciente do perigo, havia recusado a proteção oficial do Estado, optando por contratar sua própria escolta de policiais de folga. Ironicamente, seu protetor era seu algoz. Este fato revela a faceta mais perigosa da evolução do PCC: sua capacidade de infiltrar e corromper as próprias instituições encarregadas de combatê-lo. A mensagem, neste caso, foi devastadora: nem o Estado pode te proteger, pois seus agentes podem ser os executores a serviço da facção.
O ponto de inflexão: rompendo o ciclo de violência
O assassinato de Ruy Ferraz Fontes, o homem que personificava a luta do Estado contra o PCC, representa um ponto de inflexão. É um desafio direto que exige uma resposta à altura, mas que não pode ser uma mera repetição de fórmulas fracassadas. A reação instintiva do Estado a esses atos de desafio tem sido, historicamente, a repressão violenta e generalizada. A resposta aos ataques de 2006, por exemplo, foi marcada por uma onda de execuções sumárias que vitimou centenas de pessoas, muitas sem ligação comprovada com o crime, segundo denúncias de entidades de direitos humanos. Operações mais recentes, como a “Operação Escudo”, seguiram um padrão semelhante de alta letalidade e denúncias de abusos, gerando um ciclo de retaliação que, no fim, apenas fortalece a narrativa do PCC de que luta contra um Estado opressor, facilitando seu recrutamento em comunidades marginalizadas.
Essa estratégia de “guerra” contra o crime se mostrou não apenas ineficaz, mas contraproducente. Ela foca nos sintomas, a violência nas ruas, e não na causa: a estrutura empresarial e o poder econômico da facção. O PCC não é mais apenas uma gangue; é uma corporação multinacional do crime, com operações logísticas sofisticadas e um faturamento bilionário.
A resposta contundente que o momento exige precisa ser, portanto, uma resposta de inteligência. O caminho foi apontado por operações como a “Carbono Oculto”, considerada a maior da história do Brasil contra o crime organizado. Em vez de focar no confronto armado, essa megaoperação mirou no coração financeiro da facção, desarticulando um esquema bilionário no setor de combustíveis e no mercado financeiro. Especialistas em segurança pública foram unânimes em aprovar a abordagem: atacar a estrutura financeira e não apenas seus líderes ou soldados.
É essa a mudança de paradigma necessária. A luta contra o PCC não será vencida com mais viaturas ou com operações de vingança, mas com investigações integradas, que sigam o fluxo dos produtos e do dinheiro, que exponham a lavagem de capitais e que identifiquem a infiltração da facção em setores estratégicos da economia e, cada vez mais, na política. O assassinato de Fontes, com todas as características de uma execução da facção, foi a materialização da tese de que a violência é a linguagem do PCC. O Estado precisa provar que sua resposta pode ser mais sofisticada, precisa e, finalmente, mais eficaz, trocando a força bruta pela inteligência estratégica. Somente ao asfixiar economicamente a organização e desmantelar sua estrutura corporativa será possível quebrar o ciclo de violência e dar um xeque-mate no poder que emana do crime.