O horror em Porto Alegre: quando falhas do sistema penal custam vidas
Perfis criminais de alto risco exigem tratamento diferenciado na execução penal. Quando esse caminho não é seguido, abre-se espaço para que o populismo punitivo, de forma oportunista, aproveite-se de casos bárbaros como o de Porto Alegre para avançar com soluções fáceis que agradam à opinião pública, mas que carecem de eficácia e de base empírica
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Sociólogo e professor da Escola de Direito da PUCRS
Alberto Kopittke
Diretor Executivo do Instituto Cidade Segura
O horror voltou a assombrar Porto Alegre. Um homem esquartejou uma mulher com quem teria mantido relacionamento, colocando braços e pernas em sacolas de lixo que foram deixadas no início de agosto em uma rua da zona leste da cidade. O tronco foi escondido em uma mala deixada no guarda-volumes da rodoviária no dia 13, e o crânio até agora não foi localizado. O acusado, de 66 anos, já havia sido condenado em 2018 a 28 anos de prisão pelo assassinato da própria mãe, cometido em 2015, quando a matou com facadas e cimentou o corpo no armário de seu apartamento no bairro Mont’Serrat.
Mesmo com menos de 40% da pena cumprida, ele obteve progressão para o regime semiaberto, mas, diante da falta de vagas, acabou em prisão domiciliar, sob condição de monitoramento eletrônico. A tornozeleira, contudo, nunca foi instalada. O Ministério Público recorreu apenas contra a domiciliar, e o Tribunal de Justiça manteve a progressão, impondo condições mais rigorosas. Como não se apresentou para a instalação da tornozeleira, houve regressão de regime e expedição de mandado de prisão em 6 de fevereiro de 2025. Mais de sete meses depois, esse mandado ainda não havia sido cumprido. O simples cumprimento da ordem judicial poderia ter evitado o novo assassinato.
Casos como esse, ainda que excepcionais, têm se repetido no Brasil e expõem a incapacidade do Estado em oferecer respostas efetivas para situações que exigem tanto a contenção do criminoso contumaz quanto o acompanhamento individualizado, inclusive em termos de saúde mental. O tempo de encarceramento deveria ser utilizado para esses fins: conter, monitorar, intervir e reduzir riscos. Após a saída, os egressos deveriam ser acompanhados de perto, de forma a evitar que retornem ao convívio social sem suporte e sem acompanhamento.
Nesse cenário, o modelo Risk–Need–Responsivity (RNR) desponta como ferramenta baseada em evidências e voltada a orientar políticas de execução penal. Criado a partir de extensas pesquisas no Canadá, o RNR estabelece que a intensidade da intervenção deve ser proporcional ao risco de reincidência (princípio do risco); que o foco deve recair sobre fatores criminógenos mutáveis, como vínculos sociais frágeis, abuso de substâncias e déficits de habilidades (princípio da necessidade); e que as estratégias devem ser ajustadas às características individuais de cada condenado (princípio da responsividade). Ao contrário de algoritmos opacos ou de “caixas-pretas” vendidas por empresas privadas, trata-se de um modelo público e transparente, cuja eficácia vem sendo atestada em diferentes países. Relatórios oficiais do governo canadense apontam reduções consistentes das taxas de reincidência em programas alinhados ao RNR (CANADÁ, 2007), e a avaliação independente realizada no Chile mostrou uma diminuição estatisticamente significativa da reiteração entre participantes de programas estruturados segundo o modelo (CHILE, 2020).
É verdade que há críticas que associam o RNR a uma espécie de atuarialismo penal ou que apontam riscos de vieses raciais e de classe. Essas advertências são importantes, pois lembram que nenhum instrumento deve ser aplicado sem rigor metodológico, validação constante e transparência. No entanto, diferentemente de outros modelos importados e mal adaptados, o RNR não se apoia em critérios fixos como cor da pele, local de residência ou histórico familiar, mas em fatores dinâmicos e passíveis de intervenção. Quando implementado adequadamente, com treinamento qualificado e protocolos claros, os resultados são inequívocos: reduções comprovadas da reincidência e melhor direcionamento dos recursos do sistema (JUSTICE TRENDS, 2022).
O desafio brasileiro, portanto, não está em rejeitar modelos como o RNR em nome de uma crítica abstrata, mas em investir na sua adoção responsável, articulada ao sistema de saúde mental, à fiscalização judicial e ao acompanhamento efetivo de egressos. Perfis criminais de alto risco exigem tratamento diferenciado na execução penal. Quando esse caminho não é seguido, abre-se espaço para que o populismo punitivo, de forma oportunista, se aproveite de casos bárbaros como o de Porto Alegre para avançar com soluções fáceis que agradam à opinião pública, mas que carecem de eficácia e de base empírica. O verdadeiro desafio é construir políticas públicas democráticas, consistentes e baseadas em evidências, capazes de evitar que falhas institucionais resultem em novos horrores.