Fabiana Leite
Integrante do LabGepen; mestre em educação pela UEMG e especialista em violência doméstica pela USP. Como realizadora de cinema dirigiu “A batalha das colheres”, ficção sobre a violência doméstica contra as mulheres e “Lírios não nascem da lei”, documentário sobre o encarceramento de mulheres e crianças
Certa madrugada meu telefone toca. Entre soluços, uma amiga pergunta se pode vir até minha casa. Respondo que sim, claro. Ela chega com o rosto ensanguentado. O namorado havia empurrado a cabeça dela com força na parede, abrindo um corte entre os cabelos. Enquanto tentava descobrir a profundidade do corte e estancava o sangue, eu me coloquei à disposição para ir com ela até o pronto socorro e à delegacia de mulheres, mas ela estava apavorada, se sentia insegura, porque não era de Belo Horizonte, não tinha uma rede de apoio, era mãe solo e temia que a repercussão junto aos familiares pudesse obrigá-la a recuar do sonho de construir sua vida aqui, com o filho. Quando esse episódio aconteceu, eu já trabalhava nesse campo das violências de gênero e sabia que o mais importante era acolhê-la para que se sentisse segura, respeitar a sua decisão e oferecer o suporte necessário se viesse a querer denunciar.
Pertenço à geração de mulheres que lutou para instituir a Lei Maria da Penha. A lei é considerada das mais progressistas no mundo por prever mecanismos de proteção inovadores e sistêmicos. Participamos de marchas nacionais, campanhas, fóruns, audiências públicas para torná-la real. Depois da sua promulgação, exigimos e consolidamos políticas públicas substantivas como casas-abrigo, centros de referência para o acolhimento das mulheres vítimas, varas especializadas. Assumimos cargos de liderança em movimentos sociais, coletivos populares, partidos políticos, gestão de políticas públicas, cadeiras em câmaras municipais, estaduais, federais, assembleias legislativas, Congresso Nacional, Senado. Chegamos à presidência da República. Mas tudo isso ainda parece insuficiente.
E a cada volta da Terra ao redor do sol deparamos com o alarmante crescimento do feminicídio, mais e mais violências exercidas contra as mulheres, o que sempre nos desestabiliza porque por trás de cada número a vida de uma mulher foi ceifada por meio de socos, chutes, facas, armas de fogo, garrafadas, envenenamentos, estrangulamentos, pedras, marretas, peixeiras, canivetes ou sabe-se lá por quais meios cruéis.
Dias atrás recebemos o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025. Não vou aprofundar uma leitura dos dados pois diversos artigos e matérias já o fizeram, mas, como principal destaque, enquanto houve uma baixa nos indicadores de homicídios, o feminicídio cresceu. Em 2023, 1.492 mulheres foram assassinadas, o maior número desde a criação desta tipificação penal, em 2015. Não paramos aí. Apenas no primeiro semestre de 2024, foram notificadas mais de duas mil mortes violentas de mulheres. São cerca de 50 mil feminicídios na última década. A maioria deles foi cometida por maridos ou ex-maridos, namorados e ex-namorados, homens da convivência afetiva e familiar das mulheres vítimas. O que esses dados nos dizem? Que as leis não bastam. Elas são muito importantes, mas a sua integral implementação é que faz vingar a diferença.
Somos um país de desigualdades históricas, que secundariza as violências domésticas e familiares contra as mulheres. Em “Lírios não nascem da lei”, filme que realizei em 2017 sobre o encarceramento de mulheres gestantes no Brasil, dentre tantas violações sofridas por elas, uma das que mais me chocaram foi perceber que a grande maioria das mulheres por trás das grades havia sido vítima de algum tipo de violência de gênero desde a infância. Obviamente isso não pode justificar o cometimento de crimes, porém é um dado alarmante. Mas isso não é um fenômeno percebido somente ali. Você, mulher, que me lê agora, quantas violências poderia nos relatar, sofridas diretamente por si ou por aquelas mais próximas?
Inaugurei este artigo falando de uma amiga, mas poderia começar de novo falando de mim. Ainda na infância um médico me fez tirar a saia e desfilar à sua frente enquanto a minha mãe ingenuamente aguardava o fim da consulta na sala de espera, violência que só fui entender anos depois. Já na adolescência, por duas vezes em viagens de ônibus acordei com homens desconhecidos passando a mão em meu corpo. Poderia relatar outros casos, mas paro aqui.
E como mudar essa história? Estamos falando de transformações estruturais que precisam acontecer em uma sociedade ainda hoje marcada pela reprodução do machismo. A Lei Maria da Penha aponta dezenas de mecanismos que devem ser perseguidos com vontade política, recursos públicos e orçamentários. Aqui vou optar por destacar apenas um, acolhido pela lei mais recentemente em função do seu potencial de desconstrução dos ciclos de violência, os grupos de responsabilização para homens autores de violências contra as mulheres.
Atuei por sete anos como facilitadora desses grupos no Instituto Albam, em Belo Horizonte e recebemos milhares de homens, de todas as classes e raças. Cada um trazia suas justificativas para os atos cometidos e realmente acreditavam em grande medida serem também vítimas. Recebemos homens que nunca haviam respondido por outros crimes antes, já outros com passagens criminais anteriores, muitos já haviam sofrido a prisão provisória pelo mesmo crime e outros não; parte considerável deles usava também tornozeleira eletrônica. O que há de comum entre esses homens? A naturalização do uso de diversos tipos de violências contra as mulheres que acabam sendo invisibilizados em função de uma sociedade patriarcal e misógina.
Aqui não nego a possibilidade de se fazer uso de outras respostas punitivas, a serem consideradas caso a caso, mas o que há de diferencial na abordagem dos grupos em detrimento de outros recursos quanto ao potencial de ruptura com os ciclos de violência é que a responsabilização via grupos visa “quebrar discursos naturalizantes e justificadores para os atos de violência, implicando o sujeito nas escolhas feitas e mostrando que outras possibilidades são sempre possíveis”. Agora me valho da excelente conceituação de grupos pelos meus parceiros do Albam, Rebeca Rohlfs e Felipe Latanzio. Complementam que “o caminho da responsabilização, ainda, busca mostrar aos homens a estrutura social de desigualdade, privilégios e dominação, posicionando os sujeitos como atores de suas vidas e responsáveis pela manutenção dessa estrutura hierárquica em seus cotidianos e em suas relações sociais e de intimidade”. (Iser, 2013)
O problema é que não existem grupos suficientes ao alcance de todo o universo de homens que são chamados a responder pelas violências na esfera judicial. Os grupos são escassos por falta de interesse político. É preciso garantir a sua estruturação em todas os municípios como políticas públicas fundamentais, com profissionais especializados, a partir da construção de fluxos entre o sistema de justiça criminal e a rede de proteção às mulheres vítimas de violência. Os recursos podem advir de rubricas específicas de todas as esferas dos poderes instituídos em nível federal, estadual e municipal e é possível também a delimitação de recursos via penas pecuniárias junto ao sistema de justiça.
A violência se configura em grande número de casos a partir de pequenos conflitos não resolvidos que se tornam recorrentes e agravados. A incapacidade do Estado em garantir um espaço de resolução de conflitos pode estar redundando em número crescente de violências contra as mulheres que escalam para o feminicídio. Pior, o sistema meramente punitivo contribui para invisibilizar ainda mais a violência de gênero, porque ele é expiatório, pressupõe que com a aplicação da sanção penal a justiça está feita, enquanto os elementos da estrutura patriarcal são reproduzidos e em momento algum contestados. É necessária a implementação de práticas comprometidas com mudanças estruturais no campo simbólico, capazes de promover a desnaturalização de uma cultura machista e sexista.
Em 2026 faremos 20 anos da Lei Maria da Penha. Assim como a cada 8 de março nos oferecerão flores em homenagem e comemoração. Não por acaso, com flores também ornamentam os nossos corpos quando assassinadas. Dispensamos flores! Que sigam vivas as Rosas, Margaridas, Tulipas, Hortênsias, Violetas, Jasmins, Dálias, Gardênias, Íris, Magnólias, Sálvias, Perpétuas.