Ecocídio: desafio jurídico para a responsabilização de danos irreversíveis
Ainda em estágio inicial de tramitação, a proposta brasileira de tipificação se insere num movimento global de fortalecimento da justiça ambiental e de modernização do arcabouço legal diante dos desafios do século XXI
Ariadne Natal
Doutora em Sociologia, Pesquisadora Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); Pesquisadora Associada do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP) e do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)
No dia 23 de junho de 2025, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, anunciou a proposta de criação do crime de “ecocídio” no ordenamento jurídico brasileiro. O projeto prevê penas que variam de cinco a 40 anos de reclusão, além de multa, para pessoas ou empresas que provoquem danos graves, amplos ou duradouros ao meio ambiente, com impacto relevante sobre ecossistemas, recursos naturais, biodiversidade, clima ou nas condições de vida de populações humanas e não humanas. A iniciativa busca enfrentar práticas que resultam em degradação ambiental massiva, como desmatamento ilegal, poluição, mineração destrutiva e incêndios florestais de grande escala.
O conceito de ecocídio emerge da combinação entre as palavras “eco” (do grego oikos, casa) e “cidio” (do latim caedere, matar), e designa a destruição em larga escala de ecossistemas ao ponto de comprometer a vida (humana e não humana) na Terra. Embora relativamente recente, o termo carrega uma densidade ética, filosófica e jurídica que extrapola o direito ambiental tradicional. Inicialmente articulado no contexto da guerra, como nas denúncias sobre a devastação provocada pelos EUA no Vietnã, o ecocídio hoje é debatido como um possível crime contra a humanidade ou até como uma nova categoria de crime internacional.
Em 2021, uma comissão de juristas apresentou ao Tribunal Penal Internacional uma proposta para incluir o ecocídio como o quinto crime de jurisdição do Tribunal (o Estatuto de Roma, que já tem jurisdição sobre os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão). Trata-se de uma construção jurídica inspirada na estrutura de outros crimes internacionais e que visa preencher uma lacuna diante de eventos que provocam impactos ambientais severos e sistemáticos para o planeta.
No plano nacional, a proposta do ministro Ricardo Lewandowski dialoga com a proposição internacional, mas avança na definição objetiva do ecocídio ao estabelecer critérios técnicos e jurídicos para sua caracterização, como a gravidade, a amplitude e a durabilidade dos danos ambientais, bem como seus efeitos sobre ecossistemas, recursos naturais, biodiversidade, clima e condições de vida de populações humanas e não humanas. Entre as condutas expressamente previstas estão o desmatamento ilegal em áreas de proteção ambiental ou biomas ecologicamente sensíveis, a contaminação de corpos d’água e do solo por resíduos tóxicos, a emissão de poluentes atmosféricos com impacto sobre a saúde pública e os incêndios florestais de grande escala. A proposta também inclui como formas de ecocídio a mineração predatória e a promoção ou financiamento de atividades econômicas que causem danos ambientais irreversíveis.
A responsabilização penal se estende a indivíduos e empresas, incluindo não apenas os executores diretos do dano, mas também os agentes que promovem ou financiam tais práticas. A tipificação é dividida em três categorias: ecocídio simples, com pena de dez a 20 anos de reclusão; ecocídio qualificado, quando houver resultado morte, com penas de 15 a 30 anos; e ecocídio culposo, punido com reclusão de cinco a dez anos, além de multa. De acordo com a proposta, os recursos oriundos das sanções pecuniárias serão revertidos ao Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, com vistas à reparação dos danos causados. Trata-se, portanto, de um esforço normativo para responsabilizar penalmente decisões que operam com total desconsideração pelos limites ecológicos, frequentemente justificadas por interesses econômicos de curto prazo.
A proposta, contudo, já encontra resistência por parte de representantes do agronegócio. Críticos argumentam que o projeto pode gerar insegurança jurídica e interpretações arbitrárias que penalizem desproporcionalmente os produtores. Há receio de que atividades produtivas hoje consideradas legais, mas que provocam alto impacto ambiental, como o uso de defensivos agrícolas, desmatamento vinculado à expansão de áreas de cultivo/pastoreio ou queimadas acidentais possam ser enquadradas como ecocídio e penalizadas.
A controvérsia em torno da proposta evidencia a dificuldade de estabelecer novos marcos legais em um contexto marcado por tensões entre interesses econômicos consolidados, especialmente do agronegócio, e a necessidade de preservar os limites ecológicos do país. Por um lado, a criminalização do ecocídio responde a uma demanda crescente por instrumentos jurídicos capazes de conter práticas que causam danos irreversíveis ao meio ambiente. Por outro, escancara as tensões entre as agendas regulatórias e setores econômicos, que temem a ampliação da responsabilização penal e seus possíveis efeitos sobre a atividade produtiva nos moldes atuais.
Mais do que uma disputa técnica ou jurídica, o debate sobre o ecocídio reflete transformações mais amplas nas normas ambientais e na governança ecológica, impulsionadas por eventos climáticos extremos, pressões internacionais e demandas da sociedade civil por responsabilização efetiva. Ainda em estágio inicial de tramitação, a proposta brasileira se insere em um movimento global de fortalecimento da justiça ambiental e de modernização do arcabouço legal diante dos desafios do século XXI. Sua efetividade, no entanto, dependerá da capacidade do Estado de equilibrar a proteção ambiental com a sustentabilidade econômica e social, bem como de romper com a lógica da impunidade que historicamente tem favorecido a degradação em larga escala.