Eliza Samudio e Isis: o que a perícia pode fazer em casos de homicídios sem cadáver
Quando não se encontra um corpo (ou mesmo restos dele), surge a dúvida a respeito da consumação do crime. A própria materialidade, relacionada à existência de um cadáver (ou de seus restos), não pode tecnicamente ser demonstrada por essa linha
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal
O crime de homicídio simples, tipificado no Código Penal Brasileiro pelo artigo 121, é bastante conhecido e tem em seu caput uma definição elementar:
Homicídio simples.
Art. 121. Matar alguém.
A definição carece de grandes explicações mas, ainda assim, podemos oferecer uma: de acordo com Bitencourt (2011, p. 45) “ (…) homicídio é a eliminação da vida de alguém levada a efeito por outrem”.
Quando ocorre um desaparecimento, a suspeita de homicídio torna a questão da consumação do crime de suma importância, já que, quando não se encontra um corpo (ou mesmo restos dele), surge a dúvida a respeito da consumação do crime. A própria materialidade, relacionada à existência de um cadáver (ou de seus restos), não pode tecnicamente ser demonstrada por essa linha.
O Código Penal Brasileiro também tipifica o crime de ocultação de cadáver:
Destruição, subtração ou ocultação de cadáver.
Art. 211 – Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele
Na casuística de homicídios, surgem eventualmente casos emblemáticos nos quais as vítimas desaparecem, embora muitos indícios apontem com alto grau de probabilidade para um homicídio. Foi assim com Eliza Samúdio, então ex-namorada do goleiro Bruno, do Flamengo, e outros dois casos que relembraremos nesta coluna.
Eliza desapareceu em 2010, e as provas obtidas no Inquérito Policial apontaram para a materialidade do crime, mesmo com a ausência do corpo. O Ministério Público ofereceu a denúncia convencido da existência da materialidade e da autoria do crime. As provas obtidas foram decisivas e supriram um eventual laudo de necropsia, exigido quando da realização do exame de corpo de delito direto. No processo havia provas como o sangue da vítima encontrado no carro do acusado (obtido em exame pericial realizado pelos peritos criminais) e ligações telefônicas realizadas entre os denunciados. A promotoria entendeu pela presença da materialidade indireta do crime, apontada pelo conjunto de todas as provas enumeradas pela polícia: a prova pericial, documental e testemunhal.
Bruno foi a júri popular, que o condenou. Embora raro, um júri de homicídio em um caso no qual o corpo da vítima nunca apareceu se tornou um marco importante para a jurisprudência.
Anteriormente, em outubro de 1988, Daci Antonio Porte foi levado a júri popular na cidade mineira de Uberlândia pelo desaparecimento e morte de Denise Lafetá Saraiva, cujo corpo até hoje também nunca apareceu. Não havia ainda a técnica de DNA disponível.
Mais recentemente, em 2003, em Brasília, com base em um laudo pericial de exame veicular realizado no carro do suspeito, o ex-policial José Pedro da Silva foi condenado pela morte da adolescente Michele de Oliveira Barbosa, com quem teve um relacionamento que resultara em uma gravidez. O corpo jamais foi encontrado. A condenação foi possível graças ao exame de DNA do sangue da vítima e de fios de cabelo encontrados no carro do acusado.
Agora mais um caso com roteiro semelhante ganhou manchetes no Paraná: a jovem Ísis Victória Miserski, de 17 anos, encontra-se desaparecida desde o dia 6 de junho de 2024, em Tibagi, no Paraná. O inquérito apontou como suspeito Marcos Wagner de Souza. Provas importantes foram produzidas até aqui pela perícia: exames nos celulares ajudaram a entender o enredo que envolveu a gravidez da jovem; exames de imagens de câmeras mostraram o suspeito buscando comprar medicação abortiva em farmácias, quebra de dados com emprego de localização dos aparelhos celulares pelas antenas das operadoras (ERBs – Estações Rádio Base), e, mais recentemente, exames de solo, que compararam material aderido ao veículo do suspeito com solo da região, permitindo assim definir uma área na zona rural do município onde em tese existe mais chance de o corpo ser encontrado. Uma força-tarefa foi organizada e entraria em ação a partir da segunda-feira, 4 de novembro.
Em todos esses casos, a perícia prestou importante contribuição, buscando vestígios da vítima e até mesmo direcionando as investigações. O desfecho desse último caso, com um enredo muito similar aos demais, ainda pode ser diferente, se o corpo de Isis for encontrado. A expectativa é que desta vez não tenhamos mais um caso de um homicídio sem cadáver a julgar.