Múltiplas Vozes 30/10/2024

Desafios do cenário frente à criação do Observatório do Sistema Prisional/RS

Iniciativa estatal voltada à transparência pode proporcionar bons impactos no cenário de produção e divulgação de dados, proporcionando incrementos no conhecimento e no acompanhamento do quadro da população carcerária

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Ana Carolina da Luz Proença

Bacharel em Direito, mestre em Direito e Sociedade (La Salle), doutoranda em Ciências Criminais (PUCRS), integrante do Observatório de Segurança Pública da PUCRS e do GPESC – Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal

Marlene Inês Spaniol

Doutora em Ciências Sociais pela PUCRS, integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) e do Conselho de Administração do FBSP, oficial da Reserva Remunerada da Brigada Militar/RS e professora do PPGSeg da UFRGS

Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, entre os anos de 2000 e de 2023 houve um crescimento de 266,5% da população prisional no Brasil. No ano 2000, o número total de pessoas encarceradas era 232.755; passou para 832.295 mil em 2022. No ano passado, foi atingido o patamar de 852.010 pessoas presas. Em pouco mais de duas décadas, o Brasil encarcerou 619.255 indivíduos.

O cenário das prisões brasileiras, em geral, é composto por superlotação e problemas estruturais básicos que impedem ou dificultam até mesmo o exercício de uma boa prestação estatal, tornando deficientes desde a preservação da dignidade do(as) apenados(as) até o controle de facções e crimes ordenados de dentro das cadeias. Tais problemas já foram reconhecidos pelo Superior Tribunal Federal (STF), que julgou, no dia 4 de outubro de 2023, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, acolhendo a massiva violação dos direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, em um cenário que impossibilita a reintegração do apenado.

Demorou oito anos para que o STF reconhecesse, de forma unânime e definitiva, o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), fixando o prazo de três anos para a implementação do plano de ações para superar a complexidade da situação. A identificação da inconstitucionalidade do sistema prisional brasileiro corrobora e reflete uma longa história de denúncias, abusos, violências, torturas e violações que há décadas são noticiadas. Esses acontecimentos ocorrem não só contra os presos, mas também em desfavor das famílias que frequentam o ambiente e que fornecem, não raramente, o suporte que o próprio Estado não dá.

Recentemente, no Rio Grande do Sul, o Observatório do Sistema Prisional, vinculado à Secretaria do Sistema Penal e Socioeducativo (SSPS), traçou o perfil da população privada de liberdade no estado, apontando que essa população é majoritariamente masculina, com até 45 anos e sem Ensino Médio completo, divergindo dos dados nacionais que demonstram que a maioria das pessoas atingidas pela prisão não possui sequer ensino fundamental completo. No RS, cerca de 87,1% das pessoas privadas de liberdade não chegaram a concluir o Ensino Médio, conforme os dados baseados na autodeclaração e divulgados pela SSPS.

Os dados levantados apontaram que possuem o ensino: fundamental incompleto (54,7%); fundamental completo (13,8%); ensino médio incompleto (14,4%); médio completo (10,2%); ensino superior incompleto (1,6%) e superior completo (0,8%). Há ainda 1,6% de pessoas classificadas como analfabetas; 2,7% como alfabetizadas e 0,2% cujo nível não foi informado. Tais números demonstram a necessidade de fomento e incentivo para que a educação no ambiente prisional seja uma prática do tratamento penal, possibilitando aos apenados, além do aprendizado, maior chance na reintegração social.

Essa parceria firmada entre a SSPS com a Polícia Penal tem por objetivo a sistematização de dados e a identificação do perfil dos apenados gaúchos e de auxiliar, de maneira mais eficiente, na execução e implementação de políticas públicas mais assertivas e baseadas nos dados apresentados.

Os dados quantitativos de cerca de 45 mil apenados, colhidos pelo Observatório do Sistema Prisional da SSPS/RS, estão disponíveis em painel virtual aberto ao público. Esse trabalho foi lançado no último dia 1º de agosto, durante o Fórum Interinstitucional Carcerário, na Cadeia Pública de Porto Alegre.

No ato de lançamento do painel com dados do RS, foi reforçado que a intenção por parte da secretaria na disponibilização dos dados é de compromisso com atualizações diárias e transparência, diferindo da prática da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SISDEPEN), que apresenta anualmente apenas dois relatórios contendo atualizações referentes ao primeiro e segundo semestre do ano. Embora a iniciativa da SSPS/RS não resolva parte dos problemas complexos que envolvem o contexto prisional, há de se reconhecer sua a importância.

Pelo painel é possível verificar que o Estado conta com 84 unidades prisionais do regime fechado, 17 do semiaberto, dois centros de custódia hospitalar, um centro de triagem, um instituto psiquiátrico e nove institutos penais de monitoramento eletrônico. De acordo com dados de 1º de agosto de 2024, há 45.476 pessoas privadas de liberdade no Rio Grande do Sul; 2.745 são mulheres, o que corresponde a cerca de 6% do total.

Quase metade da população prisional está recolhida na Região Metropolitana de Porto Alegre, distribuída em três Delegacias Penitenciárias Regionais (DPR). Juntas, a 1ª DPR, com sede em Canoas; a 9ª, em Charqueadas, e a 10ª, em Porto Alegre, somam 45,4% dos presos. A 7ª (9,2%), a 4ª (8,3%), a 6ª (7,9%) e a 3ª (7,3%) DPR aparecem em seguida com a maior concentração de pessoas. As regiões com as menores quantidades populacionais são a 5ª (6,9%), a 2ª (6%) e a 8ª (5,9%). Há também as unidades especiais, sob gestão do Departamento de Segurança e Execução Penal, que contam com 3,1% dos apenados.

Sobre dados raciais no sistema prisional gaúcho, verifica-se que a cor de pele é predominantemente branca, já que essa população equivale ao montante de 65%, enquanto 33,6% das pessoas estão autodeclaradas como negras e pardas. É importante ressaltar que a população preta e parda se encontra, proporcionalmente, em maior quantidade no sistema prisional gaúcho do que na população em geral, uma vez que corresponde a apenas 21,2% dos habitantes do Rio Grande do Sul, de acordo com os dados do Censo de 2022 do IBGE. A parcela formada por pessoas classificadas como amarelas constitui 0,7% do total, mesmo percentual dos indígenas. Isso reforça a importância da discussão, de pesquisas e de políticas públicas para o enfrentamento da seletividade penal que atinge o cárcere.

Os reflexos do encarceramento vão além da pessoa encarcerada. Há os policiais penais, que atuam diariamente no ambiente prisional, e os familiares dos presos que marcam presença nos dias de visita. Contudo, há uma discrepância entre o sistema prisional feminino e o masculino. O segundo apresenta mais apoio familiar na presença da companheira que corresponde a 57,6%, e na população feminina de 26,6% sendo as visitas realizadas pelas mães. Em relação à quantidade de companheiros que visitam as apenadas, o número é menor e chega a 23,2%.

Outro fato interessante é que cerca de 56% das pessoas privadas de liberdade têm filhos, que representam 8,9% das visitas em unidades masculinas e 22,7% em unidades femininas.

Com relação aos delitos praticados pelos apenados, em um perspectiva nacional, encontramos, em primeiro lugar, o tráfico de drogas, seguido do roubo qualificado (SISDEPEN, 2024). Em perspectiva micro, baseada apenas no RS, verifica-se que a maioria das pessoas cometeu crimes relacionados a roubo qualificado, tráfico de drogas, furto qualificado, roubo simples e furto simples, respectivamente. Receptação, posse ou porte ilegal de armas de uso restrito e associação para o tráfico aparecem em seguida como os crimes mais registrados.

O retrato apresentado aponta uma iniciativa estatal positiva voltada à transparência de dados que corroborem com mudanças nas políticas públicas voltadas a melhorias no sistema carcerário do RS. Tal ação pode gerar bons impactos no cenário de produção e divulgação dos dados, proporcionando maior conhecimento e melhor acompanhamento da situação.

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