Múltiplas Vozes 04/10/2023

A Soma de Todos os Erros

Pensar a segurança pública apenas como um caso de polícia inviabiliza a concepção de um planejamento estratégico integrado e multissetorial que avance para além dos sintomas e atue nas causas e nos fatores que produzem a dinâmica criminal na sociedade

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Daniel Cerqueira

Pesquisador do Ipea, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor do PPGSP da UVV

Crise da segurança pública na Bahia e no Rio de Janeiro. Só em setembro, mais de 60 pessoas mortas em confrontos com a polícia, além de três policiais assassinados no estado nordestino. No Rio de Janeiro, em uma única operação na Vila Cruzeiro, a polícia deixou um rastro de 10 mortos. Essas manchetes veiculadas recentemente tratam de um cenário trágico, cujo enredo se repete há décadas no país.

Ato contínuo às chamadas na grande imprensa, instaura-se o clima de “barata-voa”, quando as autoridades tiram da cartola aquelas frases estultas, mas que podem impressionar, como: “não se enfrenta o crime organizado com rosas”; ou (sobre a morte de 12 pessoas numa operação) “é como um artilheiro em frente ao gol”.

A seguir, lança-se mão do “kit crise”: operações de saturação policial, se possível com os caveirões, que fizeram história na tragédia carioca de cada dia; organização de uma força-tarefa; a promessa de recursos milionários para compra de equipamentos, tecnologia etc.; e, mais recentemente, a divulgação de um plano de power-point que, indubitavelmente, dará cabo do problema.

A política de segurança pública na Bahia, assim como no Rio de Janeiro, é um caso clássico de repetição dos mesmos erros. O gráfico logo abaixo, com base nos dados oficiais do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, mostra que a crise atual não foi improvisada, ou consequência de uma situação pontual de guerra de facções. O que assistimos é o resultado da soma de todos os erros históricos, que redundou em um espantoso crescimento de 1.392,8% nas taxas de homicídio por cem mil habitantes na Bahia nos últimos 40 anos.

Nelson Rodrigues dizia que o “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”. Parodiando o grande jornalista e cronista, a insegurança pública não se improvisa, mas é obra de décadas de um trabalho muito bem articulado entre o descaso com a população e a repetição reiterada dos mesmos erros. É verdade que, na Bahia, a taxa de homicídio cresceu 102,8% nas quatro últimas gestões governamentais do PT; mas aumentou 217,4% nas quatro gestões governamentais do PFL, que precedeu o PT no poder. Na tabela, pode-se observar que o crescimento da taxa de letalidade em cada ciclo governamental desde 1981 independe das cores partidárias, se à esquerda ou à direita do espectro ideológico.

 

Mas quais são esses erros repetidos reiteradamente e quais são as possíveis soluções? Obviamente, o curto espaço deste artigo não nos permite listar todos os equívocos e apenas citar telegraficamente a agenda positiva.

Em primeiro lugar, o foco das ações volta-se sempre para o combate aos criminosos, ou aos grupos criminosos, quando deveria focar numa agenda estratégica para a mitigação de crime, promoção da sensação de segurança e fortalecimento do capital social. A diferença entre os dois enfoques é que o primeiro ataca o sintoma e o segundo opera sobre as causas. É claro que o paciente pode morrer por febre alta, então as ações de curto prazo são necessárias para sanar a crise, mas inúteis para tratar o enfermo, quando a doença é grave. Dessa forma, com o foco exclusivamente no sintoma, nunca chegamos a origem do problema, mas ficamos numa eterna política de apagar incêndio.

O segundo erro histórico é a aposta nos irmãos gêmeos “guerra às drogas” e “encarceramento em massa”. Enquanto a guerra às drogas é absolutamente ineficaz para fazer diminuir o consumo de drogas, seus efeitos colaterais se traduzem em violência sistêmica e geração de renda drenada para a compra de armamentos por criminosos e ainda para a corrupção policial. Outro efeito da guerra às drogas é o encarceramento em massa, que se potencializa também pelo dogma de que a prisão é a resposta certa para dar conta de todos os criminosos. Resultado: como escrevemos em outros artigos, a ideia fixa de prender indistintamente tira o foco dos criminosos mais perigosos e faz esgotar os recursos humanos das polícias numa eterna rotina de “enxugar gelo” que superlota os estabelecimentos penais no Brasil, criando as condições propícias para o nascimento das facções criminais. A Bahia, mais uma vez, é um bom exemplo. Em 1981, o estado tinha 1.377 detentos. Em 2021, a sua população prisional havia passado para 15.169, um aumento de 1.001,6%. Nesses 40 anos o número de homicídio saltou de 310 para 7.206, aumento de 2.224,5%. Notícias dão conta que entre 10 e 35 facções criminais atuam no estado, todas germinadas dentro dos presídios.

O terceiro erro é a crença que o uso indiscriminado e descontrolado da força pelas polícias vai resolver o problema. No campo da segurança pública estritamente, essa prática traz consequências perniciosas por três motivos principais: 1. Cria um abismo entre polícia e comunidade, inviabilizando a efetividade do trabalho policial. A lógica da guerra faz com que polícia e comunidade se vejam como inimigos, quando se disseminam os ódios propagadores de violência sem fim. 2. Caso o uso letal da força ocorra ao arrepio das leis, sem que haja uma responsabilização judicial, estarão criadas as condições para fazer vicejar o mercado de propinas e as milícias; e 3. O aumento da letalidade policial e a convivência cotidiana com a morte geram um custo psicológico disruptivo para o próprio policial, que pode passar a sofrer de exaustão psicológica extrema, problemas comportamentais e emocionais severos que, no limite, têm o potencial de levar esse profissional ao suicídio, como já ensinou o tenente-coronel Dave Grossman em seu livro, que é utilizado por todas as forças de segurança norte-americanas. Não deve ser coincidência que, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a Bahia seja o estado onde a polícia mais matou em 2022 (1.464 mortos pela polícia) e onde houve mais Mortes Violentas Intencionais (6659 MVIs).

Por fim, pensar a segurança pública apenas como um caso de polícia inviabiliza a concepção de um planejamento estratégico integrado e multissetorial que avance para além dos sintomas e atue nas causas e nos fatores que produzem a dinâmica criminal na sociedade.

Um futuro diferente é possível na segurança pública desde de que as autoridades não acedam ao canto dos falcões e do fetiche da tecnologia como um fim em si mesmo. Passou do momento de substituirmos a violência e o aparato repressivo como principal arma contra o crime, para investirmos no método científico de gestão baseada em evidências e focada em resultados, que conjugue ações de curto prazo, envolvendo uma repressão qualificada com a polícia orientada pela inteligência, com ações de médio e longo prazos, voltadas para a primeira infância e juventude no campo educacional, cultural, de esportes e profissional, entre outros.

Como as evidências científicas mostram, a forma mais barata e efetiva de prevenir crimes é investir nas nossas crianças, para que elas possam sonhar e perseguir trajetórias de vida apartadas do mundo do crime. Se, ao contrário, persistirmos na política de apagar incêndio, com o foco estritamente no criminoso e com o uso da violência letal, continuaremos gastando bilhões em efetivo policial, equipamentos, tecnologia de ponta e prisões caríssimas que, como vimos, ajudam a dinamizar as crises de insegurança e a adoecer nossos policiais, para quem a conta recai em termos dos custos psicológicos e, eventualmente, judiciais, com rara ou nenhuma retaguarda institucional do Estado.

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