Polícia e política
Há muito se diz, no jargão da caserna, que, quando a política entra no quartel por uma porta, a hierarquia, a disciplina e a coesão da tropa saem por outra; desta feita, a atuação vexatória de certos policiais no segundo turno nos mostra que, quando o quartel entra no palácio do Governo por uma porta, a democracia e a res publica saem por outra
Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto
Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No Brasil, o segundo turno das eleições 2022 foi marcado por episódios que alvitram a possível ação abusiva e a omissão propositada de agentes das polícias federal (PF) e rodoviária federal (PRF), e de policiais civis e militares estaduais, ao que parece decorrentes da instrumentalização das forças de segurança pública com duplo objetivo: (1) dificultar a chegada de eleitores aos locais de votação, nos quais Jair Messias Bolsonaro obteve no primeiro turno menos votos que seu adversário político; (2) encerrado o pleito, omitirem-se ante as manifestações de contestação antidemocrática do resultado da eleição, desfavorável ao presidente candidato.
O número de ônibus abordados pela PRF foi mais do que o dobro do primeiro turno. Cinco dos dez estados com mais ônibus abordados pela PRF registraram abstenção acima da média. A fiscalização violou diretamente a decisão do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, que proibiu “qualquer operação da PRF relacionada ao transporte público, gratuito ou não, disponibilizado aos eleitores”.
A enérgica operação desencadeada em tese para dificultar o acesso dos eleitores às urnas foi seguida da não menos imprópria ação letárgica da PRF aparentemente conivente com atos antidemocráticos de caminhoneiros e “cidadãos de bem não praticantes”, apoiadores do ainda presidente, que fecharam rodovias por todo o país após a retumbante vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. O risco da ocorrência desses atos antidemocráticos foi antecipado por serviços de inteligência; logo, os bloqueios não pegaram as forças federais desprevenidas. Inobstante, foram registrados mais de 400 pontos de bloqueio em rodovias no ápice do protesto.
A suspeita de omissão e de prevaricação em relação aos atos antidemocráticos não se restringe à esfera federal. Por todo o país, policiais estaduais se comportaram de maneira inusitada em serviço: policiais militares prestaram continência a caminhoneiros em bloqueio; policial civil em viatura carregou a bandeira do Brasil, em gesto de apoio a ato antidemocrático; tenente policial militar se recusou a cumprir ordem judicial de desobstrução da via pública; etc.
Se a provável instrumentalização da PF e PRF – como nunca se viu, desde a redemocratização – causa indignação e preocupa, a bem dizer, há muito que as forças de segurança estaduais se prestam ao relacionamento espúrio com governantes e lideranças políticas, como cabos eleitorais e jagunços.
Entretanto, pesquisas sociais evidenciam que as organizações policiais não devem ser olhadas como blocos monolíticos e aclaram que, em maioria, os policiais são profissionais dignos e dedicados que acreditam, sem cinismo, estar fazendo o que é certo para o bem da sociedade. Penso que esses bons profissionais se esforçaram para conter os atos antidemocráticos recentes, dentro das suas limitações.
Como compreender, então, os episódios de prevaricação em massa e de golpismo de agentes da PRF e das outras forças policiais? Quais aspectos das polícias brasileiras concorrem para a adesão de seus agentes a governos antidemocráticos, lideranças autoritárias e a projetos pessoais de poder? Vejamos sucintamente algumas possíveis explicações para o fenômeno.
Enquanto instituição, cada força policial se especifica por valores tidos como primordiais. As polícias militares, por exemplo, agarram-se aos princípios da hierarquia e da disciplina espelhadas no Exército Brasileiro. Cogito que exista um valor derivado da hierarquia e disciplina que é comungado pelas polícias brasileiras, militares e não militares: o culto à lealdade. Nas instituições policiais, mais que a obediência ou a probidade, é a fidelidade pessoal ao comandante que detém grande valor social. E, se para as polícias militares, o governador do Estado é o comandante em chefe da corporação, tudo leva a crer que, no âmbito federal, a cúpula da PRF reproduziu tal entendimento em relação ao presidente da República. Nesse sentido, não é descabido cogitar que ordens de cunho antidemocrático possam ter transitado por cadeias de comando das instituições e que elas, ao cabo, tenham sido acatadas por lealdade ao chefe.
Por outro lado, sabe-se que as organizações policiais desenvolvem o trabalho cotidiano de enfrentamento à criminalidade, como pontas de lança do sistema de administração de justiça criminal, mobilizadas numa frenética e infindável guerra ao crime que coloca os policiais brasileiros entre os que mais matam, que mais morrem e que mais se matam no planeta. Policiais que perseguem resultados inatingíveis sob condições paradoxais. Para muitos, operando num sistema criminal que “solta os bandidos que a polícia prende”, com o apoio de organismos de defesa dos direitos humanos que “somente protegem criminosos”. No arrebatamento da violência, por certo, existem policiais que sentem a vontade de agir livres dos entraves legais.
Não surpreende que policiais envolvidos na “guerra das ruas” – isto é, na caçada de homens – se identifiquem intimamente com o político aloucado que defende a não aplicação de pena ao policial que agir em legítima defesa ou quando o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção; que fomenta a ideologia do “bandido bom é bandido morto!” e sustenta a noção de que a ação letal é o melhor mecanismo de defesa da vida e do patrimônio; que brada “policial que não mata não é policial!”.
Há que se considerar ainda os interesses dos policiais enquanto categoria profissional. A despeito do mérito das mudanças propostas, desde 1988 não são poucos os profissionais da segurança pública que se sentem assombrados por centenas de projetos de lei que propõem a extinção, a unificação, a integração, a desmilitarização, a federalização, a municipalização… das polícias. É fácil encontrar nesse meio quem se sinta pela primeira vez representado no Palácio da Alvorada, posto que, acreditam eles, afinal podem contar com alguém no poder que zela pelos interesses da categoria. Tudo leva a crer que seja bem o caso da PRF, que, prestigiada no governo Bolsonaro, ganhou novas atribuições e protagonizou episódios de violência.
Além do mais, é importante observar que, em geral, são indivíduos conservadores que integram as forças policiais. No Brasil, verifica-se um certo conservadorismo torpe que se assenta na herança patriarcal, colonial, escravagista e ditatorial militar, e que se manifesta entre policiais mormente nos microdespotismos que assinalam as interações cotidianas; na defesa de valores cívicos e patrióticos distorcidos; na ostentação de uma fé (pouco ou nada) cristã frente à temida “degeneração moral da família e à lascívia que a esquerda promove”; no anacrônico combate ao comunismo imaginário; na defesa das liberdades individuais por meio do armamentismo belicoso.
Não à toa policiais e outros conservadores brasileiros, defensores da decência e dos valores familiares tradicionais, encantaram-se por um homem agressivo, bruto, desrespeitoso e sórdido. O abjeto lhes parece um ator político corajoso, autêntico e verdadeiro, que desafia as regras morais “absurdas” e enfrenta a linguagem “politicamente correta” do progressismo. Mais que líder, o verdadeiro redentor para esses conservadores pervertidos, ante a opressão que lhes estigmatiza as más ações ordinárias; um alívio às consciências pesadas.
Enfim, o envolvimento em maior ou menor grau das forças de segurança pública deixa evidente que – para além do modelo federal ou estadual, civil ou militar – o comprometimento das polícias com a democracia abarca fatores relacionados às peculiaridades da instituição (os valores), da organização (o trabalho), da profissão (os interesses) e do indivíduo (os policiais), que deverão ser mais bem compreendidos e trabalhados o quanto antes para que não mais prestem servidão voluntária ao caudilho.
Polícia e política são derivadas da mesma palavra grega, polis. Na caserna, há um velho jargão que parece dar conta sabiamente da relação entre ambas e que bem cabe às polícias brasileiras, militares e civis, federais e estaduais: “quando a política entra no quartel por uma porta, a hierarquia, a disciplina e a coesão da tropa saem por outra”. Os episódios de atuação vexatória das forças policiais que dificultaram o acesso de eleitores às urnas e que se omitiram frente a manifestações antidemocráticas revelam, ademais, que, quando o quartel entra no palácio do Governo por uma porta, a democracia e a res publica saem por outra.