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Espírito militar em desencarne

O militarismo das polícias estaduais permanece mal compreendido dentro e fora dos quartéis. Entre avanços e desacertos, as organizações policiais militares vagueiam na consolidação de uma identidade profissional voltada à segurança pública fundada na cultura organizacional própria

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Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto

Coronel da reserva (PMPA), doutor em Sociologia (UnB), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Os números da violência letal e os recorrentes episódios de abusos noticiados acirram o debate sobre o papel da polícia militar e a desmilitarização das polícias estaduais como proposta de reforma organizacional, por meio de alteração no texto constitucional, para tornar sua ação menos violenta e mais preocupada com os direitos humanos.

Por outro lado, pesquisas apontam que a maioria dos policiais militares são cumpridores da lei, competentes e dedicados, e que a violência letal se concentra em certas unidades e grupos de indivíduos.

Afinal, em que consiste o militarismo das polícias estaduais e qual a sua consequência para a violência policial?

O militarismo das polícias estaduais tem raízes históricas que remontam à fundação da Guarda Real de Polícia no Rio de Janeiro, matriz das polícias militares, em 1809, um ano após a chegada da família real ao Brasil. Formada e organizada aos moldes da melhor força militar terrestre portuguesa à época, as tropas de cavalaria.

Dedicada à defesa do reino, dos interesses da família real e à proteção da nobreza europeia assombrada pelo fantasma da revolta dos escravos em São Domingos (Haiti), ocupou-se em manter a ordem, coibir o contrabando, desfazer ajuntamentos de escravos libertos e a caçar e açoitar os fugitivos, no flagelo do passado escravocrata. Atravessou o reinado, o império e a primeira república boa parte do tempo aquartelada e em preparativos para a guerra ou envolvida em batalhas. Foram muitas e sangrentas.

Assim as polícias militares estaduais chegaram à década de 1930 como verdadeiros exércitos dos governadores, treinados, equipados e experimentados em combate. O levante de 1932 bem ilustra o espírito aguerrido e o considerável apresto militar das forças estaduais, concorrendo para que o Estado Novo as subordinasse ao Exército brasileiro, temeroso de nova ameaça separatista.

A última reforma estrutural significativa atinge as forças estaduais em 1969, quando as polícias militares – forças auxiliares e reservas do Exército voltadas à segurança interna e à manutenção da ordem, desde a promulgação da Constituição Federal da segunda república – recebem com exclusividade a atribuição nova do policiamento ostensivo fardado e saem às ruas para combater o inimigo interno comunista. Uma guerra suja contra a subversão que, para a tropa e boa parte da população, especialmente da classe média, fazia sentido. Os excessos não tardaram.

Finda a Guerra Fria e a ameaça comunista, com a abertura política e o processo de redemocratização do país, desde 1985 as polícias militares são cobradas ao ajuste do rumo.

O militarismo dos exércitos pode ser entendido como o sistema jurídico, organizacional e cultural que condiciona o indivíduo civil para a vida militar. Uma vida de rupturas e de sacrifícios pessoais em defesa do interesse, da soberania e do território nacional. Iminentemente sujeita à guerra e, portanto, a riscos à própria integridade, moral e física, da luta, de matar e morrer. Por tal razão, uma vida regida por normas e códigos de conduta rígidos. Assinalada pela imersão na caserna, num processo-limite de socialização profissional formal para o aprendizado dos valores, atitudes e comportamentos apropriados à vida militar e da experiência subjetiva de construção social do militar, do espírito militar.

Analisando o atual processo de socialização profissional e a experiência subjetiva da construção do policial militar a partir da admissão nos centros de formação, é fácil constatar que há significativas diferenças entre os estados brasileiros. Ensino médio completo, nível superior e bacharelado em Direito são requisitos exigidos, o que implica diferentes perfis de candidatos e distintos processos de formação. Uns cursos têm maior duração, outros são bem curtos, mas em regra dispensam o internato em tempo integral, o que possibilita a manutenção de vínculos sociais além da organização policial. Não há ruptura com a vida civil.

Por outro lado, desde 2014, os currículos das polícias militares seguem as orientações da matriz nacional para ações formativas dos profissionais da área de segurança pública, produzida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. A parcela específica da formação militar, em geral, ocupa menos de um terço da carga horária dos programas e corresponde em maior parte ao ensino da legislação militar aplicável às polícias estaduais e, residualmente, à prática de exercícios de ordem unida.

Logo, a compreensão do espírito militar das polícias estaduais implica menos a análise do conteúdo formal da formação – ao contrário do que muitos afirmam – que os aspectos da interação cotidiana com outros policiais militares. Na ausência das matérias e manobras voltadas à guerra, não mais contempladas nos currículos, que conteúdo informal concorre para a forja do espírito militar das polícias estaduais?

Suponho que seja o do senso comum. A ideia plasmada no imaginário popular do que é ser militar, reforçada por experiências particulares, concretas, porém breves e superficiais, do serviço militar obrigatório. Mas, principalmente, ficcional e imaginada a partir dos filmes de ação e de guerra. Conteúdo simbólico descolado da realidade profissional militar e policial militar, que enaltece a virilidade e que parece também orientar, ou melhor, deturpar efetivos da polícia civil e de guardas municipais pelo país.

Um entendimento do espírito militar propício a incoerências e distorções de toda sorte. Como a do policial militar que faz sua carreira em gabinetes sem nunca ter realizado policiamento ou do outro que se apega ao padrinho político para ser promovido ou para não ser transferido. Infinitamente pior, daquele com inclinação homicida ou sicária que, apoiado nas ideologias “bandido bom é bandido morto!” e “policial que não mata não é policial!”, sai à caça com sangue nos olhos em todo serviço de ronda; os números deixam evidente que não se trata de “guerra nas ruas”, mas sim da caçada de homens.

Muito provavelmente, um militar de carreira das forças armadas se sentirá deslocado no ambiente policial militar de hoje em dia. Não nos anos 1930 ou 1960.

O que se verifica hodiernamente na polícia militar – força da segurança pública de maior efetivo e presença no espaço público – são traços de uma cultura profissional própria delineada pela função legal que lhe cabe, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, fortemente pressionada a produzir prisões sem investigar e na pendência do ciclo completo. Em si, um arranjo potencialmente problemático.

Ademais, resta assinalada por um certo espírito militar evanescido, mais estético e plasmado no senso comum que na própria imersão na vida da caserna, acirrado por microdespotismos que marcam as relações cotidianas e que carregam toda iniquidade da nossa sociedade.

Não obstante, é a condição militar, assegurada nas Constituições Federal e Estadual, normas e regulamentos, da vivência de comandar e de obedecer, amparada na estrutura funcional hierárquica, que possibilita ao grosso dos efetivos das polícias militares o pronto atendimento das ordens superiores e que também resguarda as organizações da interferência política descabida. Todo governante estadual conta com isso.

Quiçá as polícias militares sejam as organizações que mais se renovaram e que, apesar dos inúmeros e inquestionáveis abusos, melhor exercem o controle sobre a conduta dos seus agentes dentre as demais – civis – que integram o sistema de segurança pública e justiça criminal.

Contudo, ponderar sobre a desmilitarização como panaceia para tornar a polícia militar menos violenta implica em outras importantes questões aqui não problematizadas. Por ora, de maneira pragmática, notando as transformações das polícias militares, contenho-me a comentar que elas se mostram organizações oportunamente propícias à consolidação de um espírito legitimamente alinhado aos princípios do policiamento em sociedades democráticas. Imperfeitas, mas passíveis de ajustes.

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