No dia 8 de março, nem tanto a comemorar
Dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a violência contra meninas e mulheres segue em padrões elevados (e subnotificados) no Brasil, com pelo menos três casos de feminicídio e 144 estupros a cada dia
Amanda Lagreca
Graduada em Administração Pública (FGV), Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Betina Barros
Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS), Mestre em Sociologia (UFRGS), Doutoranda em Sociologia (USP) e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
“Mulher é morta a facadas por ex-companheiro que não aceitava fim do relacionamento”, foi a notícia de um caso ocorrido em Andirá, na região norte do Panará, logo no início de dezembro de 2021. A vítima deixou três filhos menores de idade. Apesar de muito triste, infelizmente, não se trata de um caso excepcional. Em 2021, o caso da moradora de Andirá se juntou às 1.319 vítimas de feminicídio no Brasil, conforme dado publicado nesta segunda-feira (7) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública na Nota Técnica Violência contra mulher em 2021.
Em 2022, comemoramos os 90 anos do direito ao voto feminino no Brasil. Neste 8 de março, no entanto, temos pouco a comemorar. Os dados coletados junto às Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Civil evidenciam a extrema violência vivenciada pelas meninas e mulheres: no ano de 2021, houve, ao menos[1], uma vítima de feminicídio a cada 7 horas. Apesar da redução do número de vítimas comparado com o ano de 2020 de 2,4%, são mais de 1.300 vítimas em apenas um ano.
Em relação aos estupros de mulheres no Brasil, contudo, observou-se o crescimento de 3,7% em relação ao ano de 2020: em 2021, mais de 56 mil meninas e mulheres registraram casos de estupro ou estupro de vulnerável[2], o que significa uma mulher estuprada a cada 10 minutos e um total de 56.098 vítimas em um ano.
É importante lembrar que desde março de 2020, medidas de distanciamento social passaram a ser aplicadas nos estados brasileiros, em uma tentativa de frear a disseminação do coronavírus. A partir desse cenário, o incremento da violência contra as mulheres ficou evidente: em muitos lugares do mundo, inclusive, foi dito que ocorria uma “dupla pandemia”, na qual as meninas e mulheres estavam confinadas com seus agressores e com dificuldades de acesso aos serviços públicos de proteção e de registro de casos de violência.
Assim, enquanto a população estava enfrentando uma crise social e econômica, as mulheres precisaram lidar com a maior convivência com seus agressores, muitos deles também submetidos a maiores níveis de estresse, com a ausência de escola presencial para seus filhos e, muitas delas, tendo ainda que cuidar de familiares enfermos pela doença. Além disso, desde o começo da pandemia, em março de 2020, 100.398 meninas e mulheres foram vítimas de estupro no Brasil e 2.451 mulheres foram vítimas de feminicídio.
Esses dados, contudo, devem ser analisados com cautela: mesmo os altos índices de feminicídio e de crimes sexuais podem estar subnotificados no Brasil. No caso do crime de feminicídio, incluído no Código Penal como qualificadora do homicídio através da Lei n° 13.104/2015, o principal desafio que ainda resta às autoridades policiais é a tipificação correta do crime. O estado do Ceará é o exemplo mais evidente: quando 308 mulheres foram assassinadas no ano de 2021 houve apenas 31 casos de feminicídio no estado, o que corresponde a cerca de 10% dos casos.
Um ponto de atenção a respeito do tema é que a classificação de um homicídio de mulher como crime de feminicídio fica a cargo da Polícia Civil, que deve analisar quando se trata de uma morte cometida contra a mulher por razões de sua condição de sexo feminino seja porque envolve: a) violência doméstica e familiar (§ 2o-A, inciso I, do art. 121 do CP); b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher (§ 2o-A, inciso II, do art. 121 do CP). Como se vê, a norma é bastante ampla e permite uma série de interpretações. De que forma se comprova o menosprezo à condição de mulher?
O mais comum é que a tipificação seja utilizada quando há um vínculo afetivo entre agressor e vítima, quando episódios de violência doméstica já haviam sido registrados ou quando a discriminação por autor que não conhecia a vítima é extremamente explícita. Não é improvável, portanto, que haja uma tipificação apenas parcial das mulheres mortas por sua condição de sexo feminino, na qual apenas um “tipo” de situação de discriminação é protegido, normalmente aqueles casos de violência contra mulher tidos como mais tradicionais, ou seja, decorrentes de conflitos evidentes no relacionamento amoroso heterossexual.
Outro ponto que merece destaque, já tratado pela pesquisadora Isabela Sobral na edição 123 do Fonte Segura, diz respeito ao processo de aprendizado da Polícia Civil desde 2016, quando a lei que incluiu a qualificadora entrou em vigência. É possível que nos anos mais recentes, a tendência no aumento – que vinha ocorrendo anualmente até 2020 – tenha desacelerado em função de uma certa padronização entre as polícias investigativas do país sobre de que forma categorizar a morte violenta de mulheres em feminícidio. Se o patamar dos 1.300 crimes no ano seguirá estável ou se ainda veremos períodos de aumento ou decréscimo no total de feminicídios no Brasil, só os próximos anos dirão.
No caso dos crimes de estupro e estupro de vulnerável, aqui analisados em conjunto, a subnotificação é um obstáculo para enfrentarmos a violência sexual no Brasil. Dos casos notificados em 2019, tivemos 61.531 vítimas do gênero feminino no Brasil; em 2020, 54.116 vítimas e em 2021, 56.098. A comparação dos dados nos permite olhar para o panorama de crescimento da violência sexual no Brasil no ano de 2021, de 3,7% no número das vítimas, em caminho oposto ao que foi vivenciado em 2020: entre o ano de 2019 e 2020, houve um decréscimo de 12,1%.
Os desafios para as autoridades de polícia e para a sociedade como um todo demonstram que, mesmo não sendo os mesmos patamares de 2019, o crime de estupro em 2021 se comportou de forma muito semelhante ao período pré-pandemia, o que mostra a persistência de um problema social que afeta diretamente a vida de milhares de brasileiras. Além disso, é possível supor se os patamares de registro anteriores a 2020 serão logo recuperados, ou se não estamos diante de uma perda de notificações perene, com consequências muito importantes para o planejamento e execução de políticas públicas voltadas ao combate da violência sexual.
Dado o panorama geral colocado acima, vale colocar as desigualdades estaduais no enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil. Os gráficos abaixo apresentam as disparidades na comparação entre os estados.
No caso do feminicídio, chama atenção a queda de 24% no número das vítimas no estado de São Paulo no ano de 2021, passando de 179 vítimas, em 2020, para 136 no ano seguinte. Quando desagregados por semestre, nota-se que a maior queda se deu no segundo período de 2021, quando o estado registrou apenas 50 casos em seis meses, muito abaixo da média de 80 a 90 vítimas semestrais que vinham informando até então. Entender se o que aconteceu em São Paulo decorre de boas práticas policiais, expansão dos canais de atendimento e melhoria na rede de proteção às mulheres é essencial para que tais mudanças – se elas de fato foram as responsáveis pela diminuição dos números – possam ser replicadas em outros locais.
Diante dos dados da violência contra a mulher no ano de 2021, os desafios ficam mais evidentes: além das crises política, social e econômica, vivemos no Brasil também um panorama em que mais de três mulheres são mortas por dia em decorrência simplesmente do fato de serem mulheres e ao menos 144 meninas e mulheres são estupradas diariamente no país. Mudar esse cenário passa por intervenções muito além daquelas possíveis de serem realizadas pelas polícias e demais órgãos da segurança pública no país, mas a melhoria na prevenção, no registro e na investigação desses crimes é parte essencial no processo mais amplo de transformação social.
[1] Os dados de feminicídio ainda são preliminares, tendo em vista que as Delegacias de Polícia estaduais podem ainda não ter tipificado o homicídio de mulheres como feminicídio.
[2] Vale ressaltar que os dados de estupro podem estar subnotificados, tendo em vista que o Brasil não conta com pesquisas periódicas de vitimização que permitam mensurar o percentual exato de casos de cada crime que são notificados às autoridades policiais. Nos EUA, que produzem anualmente o National Crime Victimization Survey (NCVS), os dados de 2020 apontam para redução do número de casos de violência doméstica e sexual reportados às autoridades. Ou seja, houve crescimento da subnotificação, o que pode ocorrer por uma variedade de motivos. Especificamente em relação aos crimes sexuais (rape/sexual assault), apenas 22,9% das vítimas notificaram as autoridades policiais sobre o crime sofrido no primeiro ano da pandemia, em 2020, uma queda de 11 pontos percentuais em relação ao registrado em 2019. Disponível em: https://bjs.ojp.gov/sites/g/files/xyckuh236/files/media/document/cv20.pdf.