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O que está por trás do aumento dos feminicídios no Brasil?

É necessário que, em todos os estados do país, os policiais civis estejam capacitados para identificar casos de feminicídio, fazendo a distinção entre esse tipo específico de crime e um homicídio doloso simples, que não envolva alguma das situações descritas pela Lei 13.104/2015

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Isabela Sobral

Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

No Brasil, a tipificação do feminicídio foi dada pela Lei 13.104, em 2015. De acordo com a Lei, são considerados feminicídios os casos de homicídio contra mulheres que envolvam violência doméstica e familiar ou “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A partir disso, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em sua missão de coletar, padronizar e dar publicidade aos dados sobre violência em nível nacional, vem acompanhando os registros de feminicídios no país. Desde 2016, primeiro ano completo sob vigência da Lei, o número de feminicídios registrado no país vem aumentando anualmente. 

A tendência de aumento, no entanto, vem desacelerando ao longo dos anos: entre 2016 e 2017 a taxa de mulheres mortas em feminicídios cresceu 15%, subindo 13% entre 2017 e 2018, 7% entre 2018 e 2019 e, finalmente, 1% entre 2019 e 2020. Em levantamento recente, o FBSP mostrou que o Brasil atingiu o maior número de feminicídios registrados no primeiro semestre de um ano em 2021, em uma série iniciada em 2017. Entre janeiro e junho deste ano, foram registrados 666 feminicídios em todo o país. Em termos relativos, entretanto, as taxas de feminicídios tiveram uma queda de 0,3% entre os primeiros semestres de 2020 e 2021. 

Compreender o que está por trás das variações no número de feminicídios registrados exige considerar pelo menos duas dimensões. A primeira, e mais intuitiva, está relacionada a mudanças na dinâmica da violência contra as mulheres no país. Ao entender o feminicídio como o resultado final de uma série de violências sofridas ao longo da vida da mulher, uma possível razão para o aumento dos feminicídios seria um aumento geral da violência baseada em gênero.

Nesse sentido, a terceira edição da pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil mostrou que uma em cada quatro mulheres brasileiras acima de 16 anos foi vítima de algum tipo de violência durante o ano de 2020. A edição anterior da pesquisa mostrou um percentual bastante próximo de mulheres vítimas de violência durante o ano de 2018, ou seja, não parece ter havido um grande aumento. Ao mesmo tempo, o contexto da pandemia trouxe importantes mudanças nas vidas das mulheres, como diminuição da renda e aumento da convivência com o agressor, resultando na percepção de que a pandemia teria agravado a violência sofrida para 51% das mulheres. Essas mudanças se refletiram também na diminuição dos registros de casos de violência pelas Polícias Civis, em especial nos casos que exigem a ida da mulher até a delegacia, como acontece com os crimes de estupro e estupro de vulnerável. Na comparação entre os primeiros semestres de 2019 e de 2020, observou-se uma diminuição de quase 16% nos registros de estupro, com uma queda mais acentuada no mês de abril de 2020. Com o afrouxamento das medidas restritivas da pandemia, os estupros registrados cresceram cerca de 8% no primeiro semestre de 2021, mesmo que ainda sem atingir o patamar de registros do período pré-pandêmico. O cenário delineado pela pandemia, portanto, parece ter vulnerabilizado ainda mais as mulheres brasileiras em relação à violência, não apenas pela piora das condições socioeconômicas, mas também pela dificuldade de acesso aos canais estatais de denúncia e de proteção, como as delegacias das Polícias Civis. 

Está nas Polícias Civis também a segunda dimensão a ser considerada quando se fala em registros de feminicídios. Os dados divulgados pelo FBSP têm como fonte os Boletins de Ocorrência registrados nas delegacias, ou seja, produzidos pelas PCs. A classificação do feminicídio enquanto tal depende da interpretação do delegado no momento do registro inicial e após a investigação do caso. Dessa forma, é necessário que, em todos os estados do país, os policiais civis estejam capacitados para identificar casos de feminicídio, fazendo a distinção entre este tipo específico de crime e um homicídio doloso simples, que não envolva alguma das situações descritas pela Lei 13.104/2015. Assim, é possível que parte do aumento dos feminicídios no país seja explicado pelo processo de aprendizagem das Polícias Civis na identificação dos casos, bem como pela melhora na produção de estatísticas sobre esse tipo de crime. Nesse sentido, a desaceleração do aumento também pode estar relacionada a uma estabilização deste processo após quase sete anos de vigência da Lei. 

No entanto, permanecem até hoje disparidades entre os estados brasileiros na classificação dos feminicídios, a despeito de iniciativas nacionais como as Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres, elaboradas pela ONU Mulheres em parceria com a Secretaria de Políticas para Mulheres e com a Secretaria Nacional de Segurança Pública em 2016. Em 2020, 34,5% dos homicídios de mulheres foram classificados como feminicídios. No estado de Mato Grosso, por exemplo, foram quase 60%, enquanto no Ceará este percentual foi de 8%, muito abaixo da média nacional. O Ceará apresentou, ao mesmo tempo, a segunda maior taxa de homicídios femininos do país, com 7 casos por 100 mil mulheres, totalizando 329 vítimas em 2020. Diferenças como essa reforçam a hipótese da classificação inadequada dos casos de feminicídio, que podem ser erroneamente considerados homicídios simples. De acordo com dados levantados para o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, pelo menos cerca de 15% dos homicídios de mulheres cometidos por companheiros ou ex-companheiros no Brasil não foram considerados feminicídios nos Boletins de Ocorrência registrados em 2020, mesmo que a Lei determine que tais casos deveriam ser classificados desta forma. 

O panorama descrito acima mostra que ainda há muito a se caminhar no país não só para diminuir a vulnerabilidade das mulheres em situação de violência, mas também para que os casos de feminicídio sejam adequadamente identificados e classificados. Ainda que parte do aumento dos feminicídios no Brasil possa ser atribuído à melhor compreensão da Lei e dos casos de mortes violentas de mulheres que envolvem violência de gênero, continuamos diante de um fenômeno subnotificado nos registros oficiais. Essa subnotificação torna difícil determinar ao certo o que está por trás das variações nos números de feminicídios no Brasil e responder à questão: estamos diante do aumento da violência de gênero no país ou apenas de um processo de aprendizagem das polícias?

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