A cor da questão 27/03/2024

Voto de silêncio: os não ditos que reforçam a cultura do estupro e o racismo

O STJ não vê configuração de estupro de vulnerável num caso, do qual resultou gravidez, que envolve vítima que tinha 12 anos à época e o réu, um homem de 20 anos

Compartilhe

Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Audre Lorde, poeta lésbica negra, convicta do poder da linguagem, nos faz um convite corajoso para que, ao vertermos o silêncio em palavras, gradativamente possamos alcançar a transformação da linguagem em ação. Aqui, para uma reflexão sobre a recente relativização do estupro de vulnerável, na qual o STJ também firma posição a respeito dos temas sobre os quais silencia, no bojo desse convite de Lorde, podemos trabalhar com duas chaves de análise: (i) mesmo dentro do feminismo, as mulheres negras tiveram (e ainda têm) que lutar pelo reconhecimento da sua negritude, como um marcador que aprofunda a sua vulnerabilização e (ii) o Judiciário, enquanto locus de resolução de conflitos, tem papel essencial para interromper o ciclo de violência, principalmente porque as mulheres que conseguem chegar a um processo judicial de estupro estão clamando por serem ouvidas.

Estupro não é deslize, não comporta relativização, não é culpa da vítima, tampouco encontra qualquer tipo de justificativa. É crime, sendo que, em 2022, 56,8% das vítimas de estupro (aí incluso estupro de vulnerável) eram negras. No recorte das vítimas de até 13 anos, 56,2% eram negras (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano 17, 2023). Precisamos então falar sobre as meninas negras, sobre o quanto são invisibilizadas e, sem grandes formalidades, alijadas de seus direitos.

É importante que não se confunda a observância do princípio da congruência das decisões judiciais com o silenciamento do Judiciário acerca da estrutura que envolve a violência sexual. A congruência assegura contorno ao julgamento, sendo que a decisão correlata precisa, sob pena de nulidade, ficar limitada ao pedido formulado pela parte autora. Entretanto, isso não significa que, ao sentenciar, o julgador está lidando com uma situação em abstrato – longe disso. É justamente no exercício da jurisdição que se aplica o direito no caso concreto.

No último dia 12, a 5ª Turma do STJ, por 3 votos a 2, decidiu pela não configuração do estupro de vulnerável, em caso, do qual resultou gravidez, envolvendo vítima que, à época, era uma menina com 12 anos e o réu, um homem, de 20 anos. O voto do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, sublinhou que o bem-estar da criança gerada deveria ser uma prioridade absoluta. Embora condenado em 1ª instância, o réu foi absolvido pelo TJ/MG, com o fundamento técnico do “erro de proibição” – ou seja, o réu desconheceria a ilicitude do fato.

Trata-se de um processo em segredo de justiça. Estamos lidando com os aspectos que estão em domínio público. Chama a atenção que o fio condutor da absolvição do autor, pelo Judiciário, em duas instâncias, sequer tenha considerado como tema central o fato de que, como anteriormente referido, meninas negras no Brasil são as maiores vítimas de estupro. Inclusive, o recorte racial sequer apareceu nessa discussão judicial. Outro ponto que ficou completamente silenciado é a previsão normativa de abortamento legal em caso de estupro, conforme previsão do artigo 128, inciso II do Código Penal.

Quais mensagens o Judiciário passa adiante quando assim decide?

Fica justificado o comportamento do estuprador e se admite que uma menina possa manter um relacionamento afetivo/sexual que não é lido como uma violência. Fica também naturalizada a exploração de crianças e adolescentes.

É com Lélia Gonzalez que aprendemos que o lugar no qual nos situamos determina nossa interpretação sobre as intersecções entre racismo e sexismo. Não parece um mero detalhe que o Tribunal Superior que relativizou, em 2024, o estupro de vulnerável, apresente, numa composição com 33 cadeiras, ocupação de apenas 5 delas por mulheres, sendo nenhuma destas negra.

Nesse caso, admitindo que na sociedade brasileira a socialização tem se forjado no racismo e no sexismo, se naturaliza, como se derivada de uma decorrência incontornável, a violência contra meninas que, inclusive, chancela, com apoio da norma em vigor, a cultura do estupro contra vulneráveis.

E o Judiciário não parece estar disposto a ser parte da solução. Muito pelo contrário. Quando se posiciona, aceitando uma “união estável” formada por uma criança com um adulto, sobrepondo-a à defesa da  vulnerabilidade prevista em lei, tem oferecido elementos que só aprofundam o problema.

=============================

Em tempo – estão abertas as inscrições para o Selo FBSP 2023-2024, de práticas inovadoras no enfrentamento da violência contra meninas e mulheres. Para essa edição, inclusive, é possível concorrer com iniciativas que trabalhem em eixos específicos – entre outros, a violência contra meninas e mulheres negras. Confira o edital em https://casoteca.forumseguranca.org.br/. Participe!

 

Newsletter

Cadastre e receba as novas edições por email

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

EDIÇÕES ANTERIORES