Múltiplas Vozes

Vitimação policial: apontamentos de um fenômeno multifatorial*

Não há soluções prontas para o enfrentamento do problema, mas “boas práticas”, sobretudo na área da formação inicial e continuada, e a perseguição constante da profissionalização das corporações

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João Batista da Silva

Doutor em Educação, Mestre em Ciências Sociais, Especialista em Polícia Comunitária, Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais (UFRN). Membro fundador do Instituto Brasileiro de Segurança Pública e do Conselho Editorial da RBSP. Membro do Conselho Científico da Revista Alferes e da Revista SUSP. Parecerista das revistas Cronos e Bagoas/UFRN. Instrutor da Academia de Polícia Militar Cel Milton Freire de Andrade e do Centro de Formação e Aperfeiçoamento da PMRN. Professor colaborador do Centro Universitário UNIFACEX. Atualmente é Major da PMRN, editor chefe da Revista Científica Vigilantis Semper

A vitimação policial no Brasil tem se apresentado como um fenômeno multifatorial. Esse fenômeno tem como desdobramento o afastamento temporário, definitivo e, nos últimos anos, muitos óbitos de profissionais de segurança pública  (FBSP, 2016; 2018; 2019; 2020; 2021), especialmente de policiais militares, dado que estes constituem o maior efetivo das forças de segurança e, também, em face da natureza ostensiva da atividade profissional policial militar que exercem.

Em 2021, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública informou que 50 profissionais de segurança pública se vitimizaram tirando a própria vida, ou seja, os próprios agentes praticaram a violência contra si, sendo tal ato denominado como suicídio (DURKHEIM, 2005; GRECO, 2011). Em síntese, defende-se que a terminologia vitimização, muito embora seja largamente utilizada como sinônimo de violência sofrida, adequadamente, deve ser adotada quando o próprio profissional de segurança pública pratica a violência contra si, podendo chegar inclusive ao suicídio. (MINAYO, 2007; CECSP/UFMG, 2016; CANTADOR; URBANO; SILVA, 2022).

É consenso que a violência sofrida pelos profissionais de segurança pública, em sua maioria, ocorre em decorrência direta ou indireta das atividades profissionais que esses policiais e demais operadores de segurança pública exercem. Contudo, outros fatores podem ter contribuído para o aumento significativo da vitimação policial que ocorreu na última década no Brasil, como colocado pelo FBSP.

Levando em consideração os dados estatísticos do Anuário da Violência (FBSP; 2021) e de pesquisas regionalizadas, ratificou-se que os policiais e demais profissionais de segurança pública são vitimados, em sua maioria, quando estão em período de folga. Contudo, um aspecto relevante que obstaculiza e dificulta a investigação e a análise da vitimação policial é que não há uniformidades acerca desses dados. O Quadro – Vitimação de agentes de segurança pública no Brasil e no RN, a seguir, elaborado por Silva e Silva Júnior (2021), ampliado por Silva e Almeida (2022) e atualizado para este trabalho, faz uma análise comparativa entre os dados nacionais e do Estado do Rio Grande do Norte, que corroboram essa falta de cultura institucional e, sobretudo, de sistematização de dados sobre a atuação policial.

Quadro  – Vitimação de agentes de segurança pública no Brasil e no RN

Ano 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 Total
Brasil*/Agentes mortos 264 287 282 447 490 415 386 486 383 343 172 194 4.149
Rio Grande do Norte** PM da ativa 10 06 05 06 05 13 16 02 03 66
PM aposentado 01 02 02 01 02 05 06 08 02 29
Policial civil 03 01 01 02 01 02 10
Policial civil aposentado 01 02 03
Agente penitenciário 02 01 01 01 05
Bombeiro aposentado 01 01
Agente penitenciário federal 02 01 03
Guarda de trânsito 01 01
Guarda de municipal 02 01 02 01 06
Total no RN 02 17 10 10 10 10 21 26 13 05 124

Fonte: ÓBVIO (2018; 2020), ZILLI (2018), FBSP (2019; 2020; 2021), PMRN (2020), silva; SILVA JÚNIOR (2021, p. 10), adaptado, SILVA; ALMEIDA (2022, p, 244).

Legenda: * Os dados do Brasil de 2009 a 2012 são da Nota Técnica de Zilli (2018). Os de 2013 a 2018 são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública do FBSP (2019). Os dados de 2019 e 2020 são do FBSP (2021).

** Os dados de 2011 a 2018 do Rio Grande do Norte são do OBVIUM (2018; 2020); os de 2019 e 2020 são da PMRN, contudo, não há uniformidade neles que possa identificar se os profissionais estavam de serviço ou de folga. Apenas o OBVIUM identifica os policiais que são da ativa e que os aposentados.

Os dados sobre a atuação policial, em especial, a vitimação de profissionais de segurança pública são, geralmente, concatenados por diversas instituições, como acima demonstrado, e as próprias corporações policias, via de regra, não dispõem de setores próprios para essa função, tampouco utilizam essas informações para elaboração de políticas institucionais para enfrentamento dessa realidade. Só recentemente, em nível nacional, após a aprovação, em 2018, da lei do Sistema Único de Segurança Pública, que muito timidamente tem sido fomentada essa discussão nas secretarias estaduais de segurança pública.

Silva e Silva Júnior (2021a; 2021b) e Silva e Almeida (2022) defendem que há três circunstâncias que intensificam a vitimação policial. A primeira, conforme esses autores, é o exercício da atividade de segurança privada, quando desenvolvida por policiais em período de folga, que é  denominado por eles próprios e pela sociedade, em geral, como “bicos”. (BRAGA; SILVA, 2012; MANAYO; ADORNO, 2013).

Essa circunstância põe o agente de segurança pública em situação de mais vulnerabilidade, tendo em vista que, ao desenvolverem essa atividade de segurança (de natureza privada), no caso de terem de intervir para evitar um crime contra uma pessoa, um patrimônio, ou ainda um estabelecimento que estão sob sua custódia, apesar da expertise que detém como profissional da área, na maioria das vezes, age só e, mesmo contando com o apoio estatal de colegas de profissão que estão de serviço na corporação, tal auxílio (apoio, no jargão policial), não tem sido eficiente, levando muitos policiais a óbito, dado que os infratores, em geral, não atuam individualmente. Mesmo assim, segundo estudos de Oliveira; C. Filho; Silva Neto (2020), o policial tem mais chances de sobreviver quando reage.

A segunda circunstância é a intervenção policial que agentes de segurança pública realizam ao se depararem com um ato criminoso ou quando são vítimas deste. Ou seja, diferentemente da primeira modalidade, neste caso, o policial não está atuando pela corporação, tampouco está realizando serviço extra (privado) para aumentar sua renda (SILVA; BRAGA, 2012; MINAYO; ADORNO, 2013), mas, de fato, são vítimas de roubo,  não se sabendo ao certo, se já identificado pelos criminosos que buscam roubar sua arma e munições ou se o identificaram no momento do crime. (SILVA; ALMEIDA, 2022).

E a terceira circunstância, que está intimamente relacionada com a segunda, se materializa quando esses agentes de segurança se tornam vítimas de criminosos comuns ou do crime organizado, ao serem identificados como policiais. Segundo Minayo (2007) e Silva e Silva Júnior (2021a; 2021b), ainda há outras questões diretamente ligadas às formas de atuação do profissional de segurança pública, seja por prisões que tenham efetuado ao longo de sua carreira ou por desvio de conduta que pode ter se desenvolvido em uma relação de poder estabelecida entre agente da lei e infrator.

Para além dessas circunstâncias, há também alguns fatores que podem intensificar a violência praticada contra policias. De acordo com Silva e Almeida (2022), a precária formação inicial e continuada é apontada como um dos principais fatores que contribuem com essa vitimação. Conforme diagnosticado por esses policiais (pesquisadores), as tropas policiais, em especial, as polícias militares, não têm esse tipo de conteúdo em seus currículos, pois as formações institucionais abordam apenas a teoria e a prática da atuação profissional, em serviço.

As agências policiais realizam o treinamento e a capacitação (PINC, 2009), mesmo que ainda aquém da necessária (PONCIONI, 2005), geralmente para policiais trabalharem em uma guarnição motorizada, em média, com dois, três e até quatro policiais. É importante frisar, nesse aspecto, que algumas corporações já desenvolveram uma cultura institucional e, gradativamente, têm institucionalizado suas normativas internas de protocolos para tais abordagens e/ou operações, normalmente denominado de Procedimento Operacional Padrão (POP). (SILVA, 2020b).

Por outro lado, mas não menos significativo, é também destacado por esses pesquisadores, como possível fator intensificador da vitimação policial, o déficit de serviço, este, certamente um aspecto que foge à esfera institucional, ao menos em tese, dado que por não haver legislação compulsória para que os gestores estaduais periodicamente recompletem seus efetivos policiais, as corporações de segurança ficam à mercê dos respectivos interesses políticos e corporativos dos gestores vigentes para manterem seus quadros recompostos.

Com efeito, enfatiza-se que o fenômeno da vitimação policial é apenas um dos problemas a serem investigados dentro da mega problemática da violência generalizada que ocorre no país, circunscrita no vasto campo da Ciência Policial. Esta, por seu turno, deve ser concebida como de caráter interdisciplinar que compreende duas grandes áreas do saber: a segurança pública e defesa civil, (SILVA; RONDON FILHO, 2021), nem sempre devidamente priorizada, seja na esfera federal, estadual ou municipal.

A vitimação policial é, portanto, um fenômeno ainda pouco estudado no Brasil, contudo, alguns estudos exploratórios, realizados por pesquisadores(as) civis, mas também por policiais pesquisadores(as), já dão pistas do mapeamento de possíveis causas, fatores e circunstâncias deste fato social contemporâneo. Para além dos breves apontamentos elaborados, apresentou-se também uma terminologia mais apropriada, com sua fundamentação teórico-conceitual e tipificação legal para a violência sofrida pelos policias e demais operadores de segurança pública.

Em face de uma problemática grave e multifatorial, para seu efetivo enfrentamento, demanda-se uma articulação de atores públicos e privados, além da participação ativa da sociedade organizada. Certamente, muitas iniciativas já foram adotadas em níveis nacional, estadual e local, tendo algumas delas alcançando maior ou menor grau de eficiência, eficácia e efetividade. Outras nem tanto. E outra parte, apesar de muito investimento público, pouquíssimo resultado trouxe para a segurança pública no país. Portanto, não há alternativa fácil, tampouco soluções prontas para o enfrentamento de um problema tão complexo, mas “boas práticas”, sobretudo na área da formação inicial e continuada, bem como a perseguição constante das corporações na busca de sua profissionalização, paulatinamente poderão trazer algum resultado, mesmo que apenas em médio e longo prazos.

 * Versão condensada de artigo publicado no volume 16 da Revista Brasileira de Segurança Pública. Para ter acesso ao texto na íntegra, acesse.

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