Violência sexual infantil: aumentaram os casos ou as denúncias?
O crescimento do registro de todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes representa um aumento real do número de ocorrências ou um aumento de notificações? Só tirando esses crimes da invisibilidade é que poderemos de fato enfrentá-los
Luciana Temer*
Advogada, professora de Direito na PUCSP e Presidente do Instituto Liberta
É o segundo ano seguido que escrevo sobre os dados de violência sexual contra crianças e adolescentes para o Anuário Brasileiro de Segurança Pública e acho uma grande responsabilidade. O enorme esforço feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o levantamento desses dados tem um objetivo, que é traduzi-los de forma inteligente a fim de ajudar na construção de políticas públicas. Muitas vezes, olhando o cenário que se apresenta, o que podemos construir são hipóteses. Por exemplo, houve aumento do registro de todas as violências sexuais contra crianças e adolescentes. Esse crescimento representa um aumento real do número de casos ou um aumento das denúncias? Se apostarmos na primeira hipótese, teremos que lamentar; já na segunda, há o que comemorar. Nunca teremos certeza, mas vamos olhar e refletir caso a caso.
Comecemos pelo campeão de registros de violência sexual, o estupro. Foram 73.024 mil casos, dos quais 56.820 de estupro de vulnerável. O que caracteriza o estupro de vulnerável é a idade da vítima, menor de 14 anos, ou ter ela alguma enfermidade ou deficiência mental que a impeça de consentir ou, ainda, esteja temporariamente, por qualquer razão, impedida de dar um consentimento consciente. Nos interessa para a presente análise a primeira situação, de violência presumida em razão da idade. Do total de registros de estupro de vulnerável, a vítima tinha até 13 anos em 40.659 dos casos. Este número representa 61,4% de todos os estupros registrados em 2022, o que, por si só, já é extremamente preocupante. Esta preocupação fica ainda maior quando olhamos o quadro de prevalência dos estupros por idade e verificamos uma curva ascendente até chegar ao pico, de vítimas com 13 anos, e depois uma curva descendente que ainda tem alguma expressão até os 17 anos. Daí para frente, os números são bem menores. Nunca é demais lembrar, a maioria das vítimas de estupro no Brasil não é mulher, é menina, e a maioria tem entre 10 e 13 anos.
A residência continua sendo o local mais perigoso, onde 72,2% dos casos ocorrem. O local do crime é facilmente compreendido quando se sabe que, em 71,5% das vezes, o estupro é cometido por um familiar. Sim, dos estupros registrados com autoria, 44,4% foram cometidos por pais ou padrastos; 7,4% por avós; 7,7% por tios; 3,8% por primos; 3,4 % por irmãos; e 4,8% por outros familiares. Importante registrar que 1,8% dos casos apontam a mãe ou madrasta como autora da violência. Eu apostaria que em boa parte desses registros a mãe é parceira do companheiro no estupro, mas não temos este dado.
Vale destacar que, em 7,8% dos casos de estupro de vulnerável envolvendo meninas de até 13 anos, o crime foi atribuído no registro policial a “companheiro” ou “ex-companheiro”. Apesar de absurdo, isso é até compreensível em um país que está em 4º lugar no mundo no ranking de casamento infantil e tem índices inaceitáveis de gravidez precoce. De acordo com dados do Ministério da Saúde, são mais de 19 mil nascidos vivos por ano de mães com idade entre 10 a 14 anos.[1] Dados coletados pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná e divulgados em 2021 pelo Portal Catarinas mostra que entre 2010 e 2019, 252.786 meninas de até 14 anos deram à luz no Brasil, ou seja, um parto a cada 20 minutos.[2] Pesquisa realizada pela Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo e Ministério da Saúde mostrou que, de janeiro a agosto de 2022, foram registrados 148 partos de mães com até 14 anos no estado.[3] Nunca é demais lembrar que qualquer menina que dá a luz até os 14 anos foi estuprada.
Em relação a cor/raça das vítimas, acho que este ano os dados estão mais próximos da realidade. Em 2021 o dado era o seguinte: 49,7% das vítimas eram meninas brancas, seguido de 49,4% negras, 0,5% amarelas e 0,4% indígenas. No meu artigo anterior, questionei este fato, já que mulheres negras são as principais vítimas de violência doméstica e feminicídio. Sempre me pareceu que estávamos diante de uma maior subnotificação no caso de meninas negras. Em 2022 o quadro que me parece mais realista tem 56,8% de vítimas negras e 42,3% brancas, 0,5% indígenas e 0,4% amarelas. Nas minhas suposições otimistas, talvez meninas negras estejam ficando mais fortalecidas para denunciarem.
Vamos agora falar dos dados sobre exploração sexual, o crime com menor número de registros. A Polícia Rodoviária Federal em maio deste ano divulgou, juntamente com a Childhood, pelo Projeto Mapear, a identificação de mais de 9.745 pontos vulneráveis a exploração sexual infantil ao longo das rodovias federais. Isto só ao longo das rodovias federais, sem falar nas estaduais, praias, centros urbanos, rotas fluviais e locais de grandes obras. Como podemos explicar que haja apenas 889 registros no Brasil inteiro?
A maioria das vítimas tem entre 13 e 17 anos e, como sabemos, na quase totalidade são meninas de alta vulnerabilidade social. A permissividade da nossa sociedade em relação à possibilidade de relações sexuais com “novinhas” talvez explique o tamanho dessa invisibilidade.
Por fim, as violências sexuais contra crianças e adolescentes que estão em maior evidência no momento, aquelas previstas nos artigos 240, 241, 241-A e 241-B do Estatuto da Criança e Adolescente e que dizem respeito a pornografia. Importante registrar que quando o artigo 218-C do Código Penal prevê o crime de divulgação de estupro ou cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou pornografia, o tipo penal refere-se às pessoas com alguma deficiência que impeça o consentimento ou pessoas que estão, por alguma razão, temporariamente impossibilitadas de consentir. Crianças e adolescentes estão fora desta previsão legal, porque são protegidas destas ações pelos crimes previstos no ECA, cujas penas, inclusive, são maiores.
A maioria das vítimas tem entre 10 e 14 anos, mas a incidência também é alta entre 15 e 17 anos. Não temos informação sobre o sexo da vítima, nem da autoria do crime, o que seria muito interessante, para ver se essa violência segue o padrão das outras violências. Em relação ao sexo da vítima, apostaria que sim, em relação à autoria, que não.
Em números absolutos, em 2022, foram registrados 1.630 casos no Brasil, um crescimento pequeno frente aos 1.523 de 2021. Sabemos que, com a realidade virtual cada vez mais presente, com a pandemia da Covid em 2020 e, como consequência, a maior permanência de crianças e adolescentes em frente às telas de computadores, tablets e celulares, esse crime cresceu muito. Essa não é uma simples percepção nossa, forças policiais no mundo todo estão preocupadas e empenhadas em desbaratar redes de exploração e exposição sexual de crianças e adolescentes na internet.
Voltando para o questionamento inicial, sobre se o aumento de registros em todos os crimes sexuais contra crianças e adolescentes representa um aumento real de casos ou um aumento de denúncias, nunca poderemos responder com certeza, mas vou arriscar um palpite: acho que no caso dos crimes mais “tradicionais”, como o estupro de vulnerável e a exploração sexual, independente dos crimes terem aumentado ou não, vejo o aumento de registros como uma boa notícia. Se levarmos em conta a Pesquisa feita pelo Datafolha a pedido do Instituto Liberta em 2022, que mostrou que 32% dos entrevistados sofreram alguma violência sexual antes dos 18 anos e que só 11% denunciaram, teremos certeza de que há muito mais casos a serem denunciados e que qualquer crescimento de até 89% seria simplesmente o retrato mais próximo da realidade.
Em relação aos crimes virtuais, sem dúvida estes têm crescido em número de casos. Independente disso, tenho certeza de que a subnotificação ainda é muito grande e que, aqui também, o aumento de registros é bem-vindo. Só tirando esses crimes da invisibilidade é que poderemos de fato enfrentá-los.
* Este texto foi originalmente publicado na 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A íntegra do documento pode ser acessada em https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/
[1] Disponível em: https://brazil.unfpa.org/pt-br/news/apesar-da-redu%C3%A7%C3%A3o-dos-%C3%ADndices-de-gravidez-na-adolesc%C3%AAncia-brasil-tem-cerca-de-19-mil Consultado em 18 de julho 2023.
[2] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/07/05/a-cada-20-minutos-uma-crianca-da-a-luz-a-uma-crianca-no-brasil.htm. Consultado em 18 de julho 2023.
[3] Disponível em: https://eshoje.com.br/2023/02/a-cada-36-horas-uma-menina-da-a-luz-no-es/ Consultado em 18 de julho 2023.