Violência letal no Rio de Janeiro: considerações sobre padrões de distribuição espacial da violência de estado e da violência de grupos armados
O direcionamento do uso da força pelo Estado não usa como critério a ocorrência de letalidade violenta nos territórios e confere vantagens político-coercitivas para alguns grupos em detrimento de outros
Daniel Hirata
Professor de sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Legalismos da Universidade Federal Fluminense
Maria Isabel Couto
Doutora e mestre em sociologia pelo IESP/UERJ. Atualmente é gestora de dados do Fogo Cruzado
O novo levantamento do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, produzido pelo GENI/UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense) em parceria com o Instituto Fogo Cruzado traz elementos para problematizar dois fenômenos intrinsecamente relacionados que de modo geral são tratados separadamente: a violência de estado e a violência dos grupos armados. Para tanto, procedemos através do cruzamento de informações do Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro com dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro – homicídios dolosos e mortes por intervenção de agentes do estado –, do GENI/UFF – operações policiais e chacinas policiais – e do Instituto Fogo Cruzado – chacinas dentro e fora de operações policiais [1].
Comecemos pelas operações policiais em favelas e bairros periféricos, o principal instrumento de ação pública (Lascoumes e Les Galés, 2004) na repressão aos grupos criminais armados no Rio de Janeiro (Hirata e Grillo, 2019). Há mais de três décadas, são elas o método preferencial do uso da força pelo governo do Estado do Rio de Janeiro e de emprego dos seus recursos financeiros, tecnológicos e humanos. A centralidade ocupada pelas operações policiais no controle do crime no Rio de Janeiro colabora para as exorbitantes cifras da letalidade decorrente de ações policiais (Misse et alli, 2013; Plataforma Dhesca, 2017, Musumeci, 2020) no estado, em especial, na capital e região metropolitana, além de ocasionar violações dos direitos civis e humanos dos moradores de favelas e impactar severamente a rotina dos serviços públicos que funcionam nesses territórios (Redes da Maré, 2020).
A análise conjunta de diversos pesquisadores em campo e da base de operações policiais do GENI/UFF vinha percebendo dinâmicas muito distintas daquelas já bastante conhecidas observadas nas áreas sob o domínio de facções (Hirata et ali 2021) que o presente levantamento atualiza e completa. Observada a proporção de operações policiais, em bairros com predominância de cada grupo armado entre 2006 e 2021, fica clara a alta concentração em áreas do Comando Vermelho (65%), seguido por milícias (13%), TCP (11%) e ADA (11%). A proporção de mortes por intervenções de agentes do Estado (MIAE) segue tendência quase idêntica à das operações. Entre 2006 e 2021, 65% das mortes causadas em confrontos com agentes do estado ocorreram em bairros de predominância do Comando Vermelho, seguido por bairros com preponderância de domínio das milícias (17%), do TCP (11%) e da ADA (7%). Esse dado não causa surpresa, dado que as operações policiais são as circunstâncias mais recorrentes nas quais ocorre a letalidade policial. A tendência de distribuição de chacinas em operações policiais, identificada pelo GENI, reflete de forma quase idêntica aquela das operações e das mortes por intervenção de agentes do estado em geral, com uma pequena diferença. Os bairros onde há predominância do Comando Vermelho seguem as áreas com a maior concentração de chacinas (61%) e as áreas da ADA (9%) com a menor concentração. Mas milícias e TCP empatam na segunda colocação (15%).
Por fim, é interessante destacar a distribuição de chacinas fora de ações ou operações policiais. Desde que o Instituto Fogo Cruzado passou a operar na Região Metropolitana do Rio, apenas 25% das chacinas registradas – uma em cada quatro – não aconteceram em ações e operações policiais, sendo provavelmente resultantes de conflitos e disputas entre grupos criminosos. Independente do grupo armado observado, a proporção de chacinas policiais é três vezes maior do que a de chacinas fora de operações. No entanto, há grandes diferenças. Comando Vermelho e Terceiro Comando Puro registraram, respectivamente, apenas 14,4% e 16,6% das chacinas em seus territórios fora de operações policiais. Em seguida, aparece a ADA, com 40%, e as milícias, com 47,9%. Ou seja, enquanto nas áreas do CV e do TCP a esmagadora maioria das chacinas ocorre em operações, nas áreas de milícia há quase um equilíbrio.
Apesar desse fato, pesquisas qualitativas mostram que impera entre os moradores a percepção de que nessas localidades “é tranquilo” (Araújo Silva, 2017a e b). Nossa hipótese para a interpretação dessa percepção de tranquilidade é de que ela alude à baixa ocorrência de tiroteios nessas áreas, devido a uma reduzida atuação da polícia. Assim, a “tranquilidade” seria, antes, um indicador da estabilidade dos acordos entre as polícias e os grupos armados do que de uma atuação menos violenta por parte da milícia.
Nessa mesma direção, a análise comparativa entre as taxas de homicídios em áreas dos dois maiores grupos armados do Rio de Janeiro – Comando Vermelho e milícias – é reveladora. Ao longo de toda a série histórica, as áreas do CV apresentam um padrão claro. Nos bairros onde há presença da facção, quanto maior a sua hegemonia, menor a taxa de homicídios dolosos. Com a exceção do triênio de 2012/2014, os bairros de alta presença do CV apresentam as menores taxas de homicídio, inclusive em comparação com as áreas de milícia. Da mesma forma, exceto pelo primeiro triênio – 2006/2008 –, os bairros com domínio baixo do CV, e provavelmente mais suscetíveis a disputas com outros grupos, apresentam as maiores taxas de homicídios dolosos.
O mesmo padrão não se repete nos bairros marcados pela presença predominante de milícias. Na média, a taxa de homicídios em bairros com domínio baixo de milícias é mais alta do que a das áreas com domínio médio e alto – e, também, a segunda mais alta comparando também com as áreas do CV – mas, em três momentos, as taxas de homicídios em áreas de domínio alto ou médio de milícias a ultrapassam. Em 2013/2015 e 2016/2018, a taxa de homicídios em bairros de alto domínio das milícias superou as áreas de baixa dominação desse grupo. Em 2015/2017 o mesmo aconteceu com a taxa de homicídios nos bairros de domínio médio.
Em seu conjunto, esses dados revelam que a incidência das operações policiais não está correlacionada ao grau de violência letal dos territórios e que a violência dos grupos armados parece ser o inverso do que certo senso comum aponta: as milícias são tão ou mais violentas que as facções do tráfico de drogas. Em outras palavras, o direcionamento do uso da força pelo Estado não usa como critério a ocorrência de letalidade violenta nos territórios e confere vantagens político-coercitivas para alguns grupos em detrimento de outros (Hirata et ali 2021). Mas esses dados também revelam a necessidade de pesquisas que permitam aprofundar a análise conjunta da violência de estado e a violência dos grupos armados.
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[1] A análise dos dados do Instituto Fogo Cruzado foi feita diretamente a partir do georreferenciamento dos casos e do seu cruzamento com sub-bairros, favelas e conjuntos habitacionais. Já os dados do ISP e do GENI estão organizados na escala de bairros e por isso, foi necessário proceder com uma análise de graus de presença de grupos armados nesta escala. Para determinar o grau de presença em um bairro, o levantamento leva em consideração dois fatores. Primeiro, se no bairro há apenas áreas dominadas por um grupo, ou se há também outros grupos. E, segundo, a porcentagem do bairro sob domínio dos grupos armados. Nesse sentido, bairros com alta presença de algum grupo são aqueles que em geral apresentam parcela significativa do seu território dominado por apenas um grupo. Enquanto bairros com baixa presença tendem a ser aqueles onde há presença de dois ou mais grupos e/ou onde uma pequena parcela do território encontra-se dominada. A partir desses dois elementos, os bairros que possuem áreas dominadas por grupos armados foram classificados de acordo com a presença alta, média ou baixa do grupo dominante nele.
Bibliografia:
Araújo Silva, M. 2017a. House, tranquility and progress in an área de milícia in Rio de Janeiro. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, Volume Dossier Urban Peripheries. Brasília, v. 14, n. 3, e143132 .
_____, 2017b. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos Sociais e Políticos- UERJ.
Hirata, D. e Grillo, C. 2019. Sumário Executivo: Operações Policiais no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll Brasil. URL: https://br.boell.org/pt-br/2019/12/21/operacoes-policiais-no-rio-de-janeiro
Hirata, D., Grillo C. e Dirk, R. 2020. Operações policiais e ocorrências criminais: Por um debate público qualificado. Dilemas, sessão excepcional “Reflexões na pandemia”. URL: https://www.reflexpandemia.org/texto-57
Hirata et ali (2021). A expansão das milícias no Rio de Janeiro: uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, acesso em: https://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/2/sites/357/2021/04/boll_expansao_milicias_RJ_v1.pdf
Lascoumes, P. e Le Galès, P. 2004. Gouverner par les instruments. Paris: Les Presses Science Po.
Misse, M; Grillo, C. C.; Neri N. E.; Teixeira, C. P 2013. Quando a Polícia Mata. Homicídios por “autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: Booklink.
Musumeci, L. 2020. Letalidade policial e pessoas desaparecidas no Estado do Rio de Janeiro, segundo os dados oficiais (2006-2018). Boletim Segurança e Cidadania, n. 25.
Plataforma Brasileira de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. 2017. Aumento Vertiginoso da Violência Policial nas Favelas do Rio de Janeiro (coord. Orlando Santos Junior). In. Plataforma Dhesca. Relatório da Politica Econômica de Austeridade nos Direitos Humanos. São Paulo, Plataforma Dnesca, p. 49-67. Disponível em http://austeridade.plataformadh.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2017/11/publicacao_dhesca_baixa.pdf
Rede de Desenvolvimento da Maré. 2020. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré – 2019. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/media/downloads/arquivos/BoletimSegPublica_2019.pdf