Segurança Pública na Amazônia 06/12/2023

Violência contra povos indígenas é maior na Amazônia Legal

Cartografias da Violência na Amazônia, estudo produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Mãe Crioula (IMC), aponta que a taxa de mortes violentas de indígenas na Amazônia Legal é 26% mais alta que nos demais estados do país

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Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Instituto Mãe Crioula

A questão indígena atravessa muitos aspectos quando se analisa o cenário da Amazônia Legal do ponto de vista da violência e da segurança pública. Em primeiro lugar, a vida dos povos indígenas está constitutivamente atrelada a seus territórios, de modo que ameaças ao território e a seus modos de vida são ameaças diretas a eles. Sabe-se que a floresta amazônica, longe de ser uma “natureza intocada”, é fruto de relações entre seus habitantes, incluindo os povos indígenas, que por séculos vêm contribuindo com a diversidade e a saúde do bioma. Assim, falar em proteção da floresta é falar da proteção das pessoas que nela vivem e da garantia da autonomia sobre seus modos de vida. Muitas das atividades que ameaçam os territórios, os modos de vida e as pessoas da floresta configuram ilegalidades ambientais, que se conectam a outras atividades ilícitas e desafiadoras ao Estado e à sociedade.

Embora a intensificação da violência contra indígenas e seus territórios na Amazônia tenha tomado proporções assustadoras nos últimos anos, essa não é uma novidade. Desde a década de 1960, na Amazônia teve início um processo de produção do espaço regional para fins de integração ao território nacional. A expansão da fronteira econômica em direção à região amazônica teve como pressuposto a integração por meio de rodovias, a ocupação por meio do incentivo à imigração camponesa e o financiamento de projetos agropecuários, minerários e da indústria madeireira. A frente de desenvolvimento chega à região através de um discurso civilizatório, de superação do atraso e de implantação da modernidade que tiraria a região da condição periférica.

No centro do imaginário do desenvolvimento está a Amazônia como um “espaço vazio”, sem vidas e sem sujeitos. Os povos da floresta foram, assim, colocados em condições de precarização e subalternidade, e as condições locais e os modos de vida que compõem a diversidade das várias “Amazônias” foram desconsiderados. As investidas sobre os territórios significaram conflitos entre os novos atores e os povos originários, deixando rastros de violências física, psicológica e simbólica que têm duas dinâmicas constantemente atualizadas. Assim, a luta dos povos indígenas pela demarcação de seus territórios, bem como a tutela do Estado em relação às políticas indigenistas são essenciais para a garantia de direitos e defesa dos territórios.

Diante de violações de direitos e de inúmeras formas de violência, a violência letal contra indígenas é um dos elementos que podem ser mobilizados para compreender sua situação na Amazônia. Para tanto, aqui foram consideradas duas fontes de informação sobre mortes violentas intencionais contra indígenas: os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade do Datasus (SIM/ Datasus) e o levantamento feito pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) de assassinatos de indígenas. Esse tipo de análise também pode ser feito com base nos microdados dos boletins de ocorrência das polícias civis, que possuem informação sobre raça/cor das vítimas. No entanto, o baixo preenchimento dessa variável nos estados da Amazônia Legal não permitiu seu uso: o percentual de preenchimento médio de raça/cor da vítima nos Boletins de Ocorrência Policial desses estados é de 65%, o que geraria imprecisões nas análises.[1]

Esse é um assunto importante que precisa ser levado a sério pelas polícias: a produção de informação confiável sobre o perfil das vítimas e dos crimes contra a vida de indígenas é pré-requisito para a compreensão das circunstâncias desses crimes, fundamental para a formulação de políticas públicas de proteção. As forças de segurança pública não podem invisibilizar tais fenômenos na forma como preenchem seus registros administrativos. A correta identificação e registro da raça/cor das vítimas é um importante passo nesse processo.

Algumas considerações metodológicas são necessárias para a interpretação dos dados de mortalidade violenta de indígenas do SIM/Datasus. Apesar da recomendação de que a declaração de etnia/raça/cor no momento do óbito seja feita por um familiar, esse item é geralmente preenchido pelo profissional de saúde que assina o documento de óbito, baseando-se em uma característica fenotípica. Nos dados populacionais do Censo do IBGE, por outro lado, prevalece a autodeclaração. Para povos indígenas, essa é uma diferença ainda mais relevante na medida em que a identidade se funda em noções de coletividade e pertencimento, mais afeitas ao conceito de etnia, subsumido na categoria raça/cor na maior parte dos registros administrativos e pesquisas primárias produzidas no país. É muito comum que a etnia/raça/cor indígena fique subestimada nos dados de mortalidade em favor de uma superestimação da categoria “parda”, por exemplo, apontada pelo médico a partir de uma análise visual, podendo gerar subnotificação da vitimização indígena. Como efeito, as taxas de mortes violentas de indígenas, razão entre vítimas e população, são, portanto, calculadas com base em duas formas diferentes de aferir a etnia/raça/cor da vítima.

No Brasil morreram 200 pessoas indígenas em 2021, último ano disponível no SIM/Datasus, 114 delas (57%), na Amazônia Legal. No entanto, a população indígena do país que vive na Amazônia é menor, e representa 51% dos indígenas brasileiros. Em outros termos, a taxa de mortes violentas de indígenas na Amazônia Legal é de 13,1 para cada 100 mil indígenas, 11% mais alta do que a média brasileira de mortes violentas intencionais de indígenas, de 11,8 por 100 mil indígenas. Já nos demais estados brasileiros fora da Amazônia Legal, a taxa é de 10,4 vítimas a cada 100 mil indígenas. Ou seja, a taxa de mortes violentas indígenas na Amazônia é 26% maior do que fora dela.

Em termos absolutos, o estado com o maior número de vítimas indígenas em 2021 foi Roraima, com 46 vítimas, e onde também se encontra a maior taxa: 47,3 por 100 mil indígenas. Essa taxa é consideravelmente maior que a do segundo lugar, Tocantins, com 15 indígenas mortos a cada 100 mil. Roraima é o estado que abriga as Terras Indígenas (TIs) Raposa Serra do Sol e Yanomami, esta última palco de uma grave crise associada ao avanço do garimpo e de desassistência estatal que, em 2023, levou o Ministério da Saúde a decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na TI. Isto é, além das ameaças socioambientais do garimpo ilegal e insegurança alimentar dos indígenas em Roraima, a violência letal também está muito presente. Vale lembrar que, em termos de registros policiais, Roraima é um dos estados com menor nível de identificação de etnia/raça/cor das vítimas, o que significa dizer que as polícias podem ainda não ter se dado conta do tamanho do problema.

Em segundo lugar está o Amazonas, estado com a maior população indígena do país: 490.854 pessoas. Foram 41 vítimas em 2021, número que vem caindo e teve redução de 14,6% entre 2018 e 2021. Em termos de taxa, são 8,4 vítimas a cada 100 mil indígenas. Quase metade das vítimas (15) em 2021 se concentra em 5 municípios: São Gabriel da Cachoeira, Barcelos, Tabatinga, Eirunepé e Lábrea. Em todo o período, das 181 vítimas indígenas no Amazonas, 100 residiam nesses municípios.

Se é fato que a violência letal contra indígenas é maior na Amazônia, é preciso reconhecer que o número absoluto de vítimas indígenas caiu entre 2018 e 2021. A redução na Amazônia Legal foi ainda maior que nos demais estados e na média brasileira: foram 18% menos indígenas mortos na região. No Brasil, essa queda foi de 16,7% e nos demais estados, de 14,9%.

Em relação à escala municipal, foram selecionados os 10 municípios com o maior número de indígenas assassinados entre 2018 e 2021. Roraima, Amazonas e Pará concentram os municípios do ranking, cuja liderança é da cidade de Alto Alegre (RR), com 80 vítimas indígenas no período. O município teve taxa de mortes violentas de 141,7 indígenas mortos a cada 100 mil em 2021. Alto Alegre é o município que faz fronteira com a já mencionada TI Yanomami e tem uma população de 12.705 indígenas.

As duas maiores taxas municipais de mortes violentas intencionais de indígenas também estão em Roraima, nos municípios de Iracema e Caracaraí, ao sul da capital, Boa Vista, e às margens do Rio Branco. Caracaraí, apesar de apresentar cenário ainda bastante preocupante, apresentou queda de 68,4% nos números absolutos entre 2018 e 2021. Já Iracema teve alta de 125%. São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a maior cidade indígena do país com 48.256 habitantes que se declaram indígenas, ocupa o terceiro lugar, com 36 vítimas no período e taxa de 12,4 mortes a cada 100 mil indígenas.

Ainda no Amazonas, Tabatinga e Lábrea estão respectivamente em 5º e 10º lugar. São municípios conhecidos por conflitos violentos: em Tabatinga, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, prevalece a influência do narcotráfico, que tem na região o que muitos profissionais que atuam na repressão ao crime organizado indicam como a base da segunda maior rota de cocaína em operação no Brasil; já em Lábrea são os conflitos por terra que chamam a atenção, com a presença de grileiros e madeireiros. Belém (PA), a única capital da lista, apresentou uma das maiores taxas de mortalidade em 2021: foram 94,1 indígenas assassinados a cada 100 mil.

Ademais, vale mencionar que as circunstâncias desses crimes são desconhecidas e não necessariamente se relacionam com questões territoriais e de crimes ambientais que povoam a Amazônia, podendo ser fruto de conflitos interpessoais, característica comum da violência letal no Brasil. Entretanto, é notório que a ameaça aos indígenas se intensifica à medida que o contexto de múltiplas ilegalidades se agrava na região.

Segundo o levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em 2022 sobre assassinatos de indígenas durante o período de 1985 a 2022, o oeste do Maranhão concentra o maior número de ocorrências de morte de indígenas, sobretudo na fronteira com o estado do Pará. Roraima, mais especificamente a parte norte, também se destaca pela alta ocorrência, envolvendo a região da TI Raposa Serra do Sol e outras regiões de garimpo no estado. Também é possível verificar a incidência no estado do Acre e na sua fronteira com o Amazonas, subindo em direção à região dos vales dos rios Javari e Juruá, na fronteira com o Peru, e onde está concentrada a maior presença de indígenas isolados do mundo, com grande diversidade de povos, dentre eles: Marubo, Matis, Korubo, Kanamari, Kulina-Pano, Matsés e Tsohom-dyapa.

A região do Vale do Javari foi palco dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips em 2022, que chocaram o país e a comunidade internacional, mobilizando olhares e debates em torno da Amazônia. Trata-se de uma zona de intensas disputas entre narcotraficantes dos três países transfronteiriços, atravessada por outras ilegalidades como biopirataria, contrabando de pescado e caça e desmatamento. Essas atividades têm forte impacto sobre os povos indígenas locais, especialmente os povos isolados, que vivem na região das cabeceiras dos rios Ituí, Itaquaí, Jutaí, Curuçá e Javari.

Nos últimos anos a violência contra indígenas se intensificou, acompanhando a expansão de áreas de garimpo, muitas delas ocorrendo dentro de seus territórios. Não se pode deixar de mencionar o incentivo público feito por governos ao longo dos últimos anos da expansão da atividade garimpeira e, até mesmo, promovendo propostas inconstitucionais como a legalização do garimpo em terras indígenas. Na medida em que o garimpo contamina rios, peixes, ameaça a biodiversidade, elimina a fauna e a flora e compromete toda a cadeia alimentar, incentivar e dar condições para que atividades desse tipo ganhem espaço está diretamente relacionado à situação em que chegaram os povos Yanomami (Roraima) e Munduruku (Pará), para citar apenas dois exemplos. A questão fica ainda mais complexa quando o tráfico de drogas chega até esses territórios, construindo com o garimpo relações de territorialização,[2] como já pode ser observado em várias regiões.

[1] Alguns estados têm melhores cenários que outros: a situação do Maranhão é a mais grave, já que no estado não há informação de raça/cor das vítimas em nenhum boletim de ocorrência. Acre e Pará são bons exemplos, com 92% e 90% de preenchimento, respectivamente. Dentre os que têm algum preenchimento, Roraima tem o menor índice e fornece informações de raça/cor das vítimas em 55% dos BOs.
[2] A territorialização é um conceito geográfico que se refere à manifestação de relações de poder no território. Nesse caso específico, para legitimar o controle sobre o território e de seus recursos, essa ação dos grupos criminosos é materializada através da força e violência. HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multi-territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
* O texto original foi publicado no estudo Cartografias da Violência na Amazônia e pode ser lido na íntegra no link https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/sites/2/2023/11/cartografias-violencia-amazonia-ed2.pdf

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