Vigilantes com fuzis em áreas rurais? Por que isso não faz sentido
O relator do projeto, Hamilton Mourão, esclarece que os novos calibres poderão ser utilizados apenas em serviços de proteção de propriedades em áreas rurais, excluindo integrantes de movimentos sociais e outros "agentes econômicos"
Roberto Uchôa
Policial federal, membro do conselho de administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Portugal
Nos últimos meses, tem surgido uma série de projetos de lei, tanto no Senado quanto na Câmara, com o intuito de modificar ou flexibilizar a política de controle de armas em vigor desde o início do atual governo Lula. Após quatro anos de crescente disponibilidade e venda de milhões de armas de fogo durante o governo Bolsonaro, muitos congressistas parecem insatisfeitos com o retorno a uma política de controle mais rigorosa, focada no combate ao desvio de armas do mercado legal para o ilegal. Um dos projetos que ganharam destaque recentemente propõe permitir que vigilantes atuem em áreas rurais com armas usualmente reservadas para uso militar, como os fuzis de calibres 5.56 e 7.62.
Atualmente, de acordo com o artigo 22 da Lei nº 7102/83, os vigilantes em serviço têm autorização para portar revólveres nos calibres 38 e 32. Durante o transporte de valores, é permitido o uso de espingardas de calibres 12, 16 ou 20, desde que sejam de origem nacional. Esses calibres foram mantidos como permitidos pelo Decreto nº 11.615/2023, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento. No entanto, o mesmo decreto classificou as armas longas, como fuzis nos calibres 5.56 e 7.62, como restritas. Isso se deve à energia cinética superior a 1.620 joules produzida pelas munições na saída do cano, resultando em impacto e danos significativamente maiores do que os desencadeados pelos calibres permitidos.
O projeto de Lei nº 6140/2023, proposto pelo senador Alan Rick (União/AC), visa modificar o artigo 22 da Lei nº 7102/1983 para permitir que vigilantes, durante o serviço de proteção rural, possam portar armas de fogo nos calibres 5.56 e 7.62. Em outras palavras, a proposta busca autorizar o uso de armas de calibres restritos exclusivamente em áreas rurais pelos vigilantes. Mas por que somente em áreas rurais?
Na justificativa para a proposta, o autor argumenta que a criminalidade nas áreas rurais tem aumentado, com criminosos utilizando armas de “grosso calibre”. Ele sugere que a presença de vigilantes armados com armas semelhantes poderia auxiliar as autoridades na identificação, investigação e repressão de grupos criminosos. Esse entendimento foi seguido pelo relator, senador Hamilton Mourão (Republicanos/RS), que afirmou em seu relatório que “…a presença ostensiva de armamento tem o poder de dissuadir os criminosos de agirem, uma vez que pensarão duas vezes antes de se envolverem em atividades ilegais se souberem que os residentes estão devidamente armados e protegidos.”
O relator também esclarece que nem todos poderão adquirir essas armas. Segundo consta no relatório, esses novos calibres somente poderão ser utilizados em serviços de proteção de propriedades em áreas rurais, excluindo integrantes de movimentos sociais e outros “agentes econômicos”. Essa clarificação encerra qualquer dúvida sobre quem serão os beneficiários do projeto: apenas aqueles que podem arcar com os custos de implantação de um serviço de vigilância privada 24 horas por dia, sete dias por semana, com armamento sofisticado que custa dezenas de milhares de reais.
Além disso, é importante destacar algumas inconsistências presentes no projeto e no relatório. Em primeiro lugar, não há evidências de que o uso de fuzis nos calibres 5.56 e 7.62, comuns em muitas forças armadas, incluindo o Exército Brasileiro, tenha algum impacto positivo no combate à criminalidade. Na verdade, desde os anos 80, o Brasil tem enfrentado uma verdadeira corrida armamentista entre as forças policiais e grupos criminosos, com resultados geralmente desanimadores.
Um segundo ponto a ser considerado é que não cabe aos trabalhadores da segurança privada identificar, investigar e reprimir atividades criminosas, como apontado na justificativa do projeto. Essas são atribuições típicas do Estado, e a tentativa de realizá-las por parte da segurança privada pode configurar usurpação de função pública ou até mesmo atividade de milícia privada, dependendo do contexto. Os profissionais de segurança privada devem se limitar à proteção da propriedade vigiada, e permitir que portem armas utilizadas em guerras não faz sentido.
Um terceiro ponto importante a ser destacado é que as armas utilizadas por vigilantes têm sido frequentemente desviadas para o mercado ilegal, seja por furto, roubo ou extravio. De acordo com dados obtidos pela CPI da Alerj em 2015, entre 2005 e 2015, 17.662 armas foram desviadas para criminosos apenas no Estado do Rio de Janeiro, e 4.500 delas simplesmente “desapareceram” dentro das empresas, sem deixar vestígios. Isso demonstra claramente que, apesar do conteúdo do relatório, a presença de pessoas armadas não intimida ações criminosas e, na verdade, pode até mesmo atrair criminosos que estejam em busca de armas.
Se isso já ocorre com armas de calibres permitidos, como revólveres calibre .38 e espingardas calibre 12, não é difícil imaginar o que pode acontecer quando empresas e vigilantes tiverem arsenais contendo fuzis de calibres 5.56 e 7.62, armas restritas também pelo grande interesse que organizações criminosas têm nelas e no seu poder de destruição.
Além dos pontos mencionados anteriormente, é necessário considerar os problemas enfrentados pelo país nos últimos anos com relação ao controle da venda e circulação de armas e munições. Um relatório do TCU identificou várias falhas que permitiram que pessoas cumprindo penas e até mesmo já falecidas fossem autorizadas a adquirir armas e munições.
Em vez de debater sobre o aumento da quantidade e poder de fogo das armas que podem ser adquiridas, é essencial enfrentar a precariedade na fiscalização e controle do mercado legal de armas. Enquanto isso não for melhorado, o país continuará vendo armas legalmente adquiridas indo parar nas mãos de criminosos, que as utilizam contra a população e as forças de segurança.
O projeto de lei em discussão, ao invés de diminuir as ações criminosas em áreas rurais e melhorar a segurança pública, terá um efeito contrário. Permitir que empresas de segurança privada tenham em seus arsenais armas de grande interesse para organizações criminosas irá transformá-las em alvos desses grupos. Um fuzil nos calibres citados no projeto tem um alto valor no mercado ilegal e pode ser rapidamente convertido em dinheiro. Se o país já enfrenta problemas com a segurança de arsenais públicos e privados, a aprovação desse projeto pode aumentar ainda mais o problema ao criar mais uma fonte de armas de calibres restritos para criminosos.