Verdade não se cria: como morreram as meninas Emily e Rebecca
O Ministério Público deixou de indiciar os policiais suspeitos e produziu um indiciamento “conveniente”, atribuindo aos chefes do tráfico da região a responsabilidade pelas mortes, ocorridas em meio a comprovada ausência de qualquer confronto ou ação, que não a da polícia presente no cenário
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal
Na mesma semana em que um tsunami de notícias sobre violência policial tomou conta do noticiário em nosso país, um caso não resolvido ganhou as manchetes no estado do Rio de Janeiro. O caso Emilly e Rebeca.
O slogan “Verdade não se cria” está na logomarca de um projeto inovador, o Mirante, finalista do Prêmio INNOVARE 2024. A iniciativa congrega as Defensorias Públicas dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo; pesquisadores ligados a universidades – Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF); Grupo de Pesquisas em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM-UFF); Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP-UFF), Laboratório de Estudos Digitais (LED-UFRJ), Laboratório de Pesquisa em Mídias e Métodos Digitais (MEDIA.LAB-UFRJ), agências de comunicação e peritos independentes.
Essa rede articulada no projeto é voltada para a aplicação das ciências forenses na promoção e defesa dos Direitos Humanos e ações conjuntas para a organização, sistematização e análise de dados e documentos, combinando a atuação nos casos concretos de letalidade policial com a intervenção na produção de políticas públicas que impactem a área da segurança pública.
Um ano atrás, o caso Emily e Rebecca foi mencionado na edição 212 do Fonte Segura. Naquela oportunidade, a data de 4 de dezembro de 2023 marcava que haviam passado exatos três anos desde a ocorrência, relembrada aqui em trecho de “Perícia em Evidência”:
“A escolha desse tema nesta semana passa por um caso em especial: o Caso Emily e Rebecca, duas meninas, de 4 e 7 anos, que morreram exatamente há três anos, no dia 4 de dezembro de 2020, uma sexta-feira. Elas foram baleadas na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, atingidas por um único disparo de fuzil cujo projétil atingiu a cabeça de Emily e em seguida o tórax de Rebeca. Uma equipe policial do 15º Batalhão da PM, que estava em patrulhamento na região, foi considerada suspeita pela origem do disparo. Contrariando inúmeras evidências, o inquérito foi arquivado quanto à participação dos policiais e o Ministério Público acabou por indiciar de forma genérica os chefes do tráfico de drogas da região. Não havia nenhum relato de troca de tiros. Testemunhas apontaram a origem do disparo à viatura. Um laudo em especial, o de reprodução simulada, que foi usado para sustentar a versão da polícia, tem sido objeto de críticas e pode ser revisto por iniciativa da Defensoria Pública.”
Agora, quando se completam 4 anos da morte das duas meninas, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro pediu ao Ministério Público estadual para que as investigações sobre as mortes das meninas Emily Victória da Silva e Rebecca Beatriz Rodrigues Santos sejam reabertas. O pedido foi encaminhado ao Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público e deverá ser analisado. Uma das promotorias de um núcleo da Baixada Fluminense chegou a contestar em nota a legitimidade do pedido.
Mas o que exatamente está em jogo? A resposta pode ser: a busca de uma verdade que insiste em se mostrar etérea. Uma das teorias substantivas ou tradicionais da verdade é a da verificação ideal. Esse critério diz que uma teoria é científica quando pode ser verificada e que as suas leis e teorias podem ser evidenciadas como verdadeiras ou falsas, através da observação. Em resumo, para ser científica uma teoria precisa se sustentar, mesmo examinada por outros atores que não aqueles responsáveis por sua apresentação. O próprio filósofo Karl Popper defendeu que uma teoria só pode ser considerada científica quando é falseável, ou seja, quando é possível prová-la falsa. Esse conceito ficou conhecido como falseabilidade ou refutabilidade.
No caso das meninas Emily e Rebecca, o Ministério Público deixou de indiciar os policiais suspeitos e produziu um indiciamento “conveniente”, atribuindo aos chefes do tráfico da região a responsabilidade pelas mortes, ocorridas em meio à comprovada ausência de qualquer confronto ou ação, que não a da polícia presente no cenário. A fundamentação baseou-se em um laudo de reprodução simulada realizado pela polícia civil por intermédio de peritos ligados à Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense.
A reanálise desse laudo e dos demais documentos do processo mostrou que essa “verdade” não é incontestável. Ao contrário, falhas, erros e interpretações baseadas em premissas equivocadas permitem concluir que a tese de que o disparo de arma de fogo que atingiu e gerou a morte das duas vítimas tenha partido da viatura policial É A MAIS PROVÁVEL. Uma análise envolvendo arquitetura forense simulou os cenários possíveis e demonstrou em vídeo 3D a nova conclusão encontrada.
Verdades forenses como aquelas que sustentaram inúmeras mortes ocorridas durante a ditadura militar também pareciam irrefutáveis, mas não para todos que as recebiam.
Prática comum em centros internacionais que lidam com a prova forense, a revisão de provas técnicas ainda precisa ser mais bem conhecida e incorporada ao arcabouço de nosso Sistema de Justiça. Nunca um lema foi tão adequado: VERDADE NÃO SE CRIA!