Multiplas Vozes 26/10/2022

Vendendo fumaça

A ideia da câmera é boa para pessoas comuns e/ou policiais. O problema é que os poucos que cometem crimes incutiram na cabeça dos colegas uma ideia que supostamente ajudaria a categoria, mas na verdade apenas serve para encobrir ações ilegais daqueles que usam da farda ou da carteirinha para forrar os bolsos

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GUARACY MINGARDI

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Há algumas semanas, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, ocorreu um fato que se torna cada vez mais comum. Dois policiais efetuaram uma prisão em flagrante por furto (ou roubo, a testemunha não souber identificar) de celular. Durante a ação, como o ladrão resistia, teria levado um tapa. A pessoa que me narrou os fatos conta que depois disso os dois policiais começaram a ser alvejados com garrafas de cerveja, copos de vidro, etc.

Quando digo que essa atitude está se tornando corriqueira levo em conta a recepção que, de uns anos pra cá, está se tornando corriqueira em muitas atuações da Polícia Militar. Principalmente quando se trata de impedir um “pancadão”, festas feitas na periferia, no meio da rua, com música muito alta saindo de alto-falantes no porta-malas de um ou mais carros. Nessas festas uma multidão bebe de tudo, mas principalmente cerveja. Alguns usando também algum estimulante ilegal, como cocaína. Quando a vizinhança reclama e disca 190 é comum que os policiais atendendo a ocorrência sejam alvejados com copos de cerveja, garrafas, etc. Principalmente quando se trata apenas de uma dupla de PMs. Por conta disso se tornou habitual o deslocamento de mais de uma viatura para esse tipo de ocorrência.

No caso em tela a situação foi mais grave, porque em princípio o alvo era um ladrão de celulares, uma categoria não muito amada pelos paulistanos. Uma das explicações para tal atitude seria a indignação dos populares com o suposto tapa. Outras são a bebedeira, o local muito frequentado por colegas do preso, revolta de parte dos frequentadores, a maioria jovens de baixa renda, com a polícia, ou mesmo o simples espírito de imitação. Um começou o tiro ao alvo e os restantes, muitos dos quais bêbados, simplesmente acompanharam o movimento.

Neste caso específico os policiais, com medo dos projéteis, fizeram o possível. Foram se retirando agachados, de arma em punho, puxando o suspeito. E a questão que fica é a seguinte: e se um deles, atingido por uma garrafa ou copo, perde o controle e dispara? Ou mesmo dispara sem querer, o que também é provável numa circunstância como essa? E o que possivelmente seria uma bala perdida encontra um alvo, e alguém é ferido gravemente ou morre. Como o autor do disparo vai provar que a ação da multidão acabou levando a uma fatalidade?

Simplesmente não vai. A única testemunha a seu favor possivelmente seria seu companheiro. As possíveis testemunhas iriam desaparecer, e os amigos da vítima contariam uma versão diferente. Para explicar os cacos de vidro pelo chão, é bem possível que alegassem que somente após o disparo é que a polícia teria virado alvo. Ou seja, pelo menos duas versões contrastantes. E se o atingido pelo disparo fosse branco, de classe média e família bem relacionada, demonstrar que o ataque tinha partido dos frequentadores dos bares seria bem mais difícil do que provar que focinho de porco não é tomada.

Esse relato ajuda a mostrar o outro lado de uma questão, que por incitação de uns poucos policiais e seus seguidores baba-ovo, se transformou numa polêmica que divide a sociedade. Deve ou não ser adicionada uma câmera ao colete de cada oficial da lei?  A maior parte da discussão até agora está focada apenas na questão de impedir que ele cometa alguma arbitrariedade, mas essa é apenas uma face da moeda. Impedir que alguns poucos vão além do que prevê a lei, seja por meio da violência ou corrupção, não é a única função dessa medida. A outra face é que a câmera também serviria para comprovar a versão dos policiais envolvidos na ocorrência mencionada. E muitas outras, já que todo criminoso profissional sabe que quando vai preso a melhor tática é acusar policiais de violência ou extorsão. No mínimo para criar uma cortina de fumaça e escapar da prisão provisória. E, como sabemos, a maioria dos agentes da lei age corretamente. Eles, afinal de contas, são funcionários públicos, não iriam jogar uma carreira no lixo.

Na verdade, a ideia da câmera é boa para pessoas comuns e/ou policiais. O problema é que os poucos que cometem crimes quando em serviço venderam fumaça, como diziam os tiras antigos. Incutiram na cabeça dos colegas uma ideia que supostamente ajudaria a categoria, mas na verdade apenas serve para encobrir ações ilegais daqueles que usam da farda ou da carteirinha para forrar os bolsos.

 

 

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