Velhos problemas e nova roupagem: o enfrentamento do crime organizado na América Latina
O cenário atual nos mostra uma mudança nada sutil no combate ao avanço do crime organizado nas Américas: uso de linguagem similar ao combate a grupos terroristas, inclusive classificando-os como narcoterroristas, aumento da militarização e do uso político da retórica do combate à violência com a mão forte do Estado
Daiane Londero
Doutora em Políticas Públicas (UFRGS) e pesquisadora do NEDIPP (UFRGS)
Leonardo Geliski
Doutor em Políticas Públicas (UFRGS)
Tassiana Moura de Oliveira
University at Albany - State University of New York (SUNY)
O crime organizado representa um dos maiores desafios de segurança pública nas Américas. Após a chacina ocorrida em 28 de outubro no Rio, uma proposta vem tomando a mídia e o Congresso Nacional: a criação de um novo tipo penal de narcoterrorismo. Reduzir o combate ao crime organizado a uma nova roupagem de tipificação como terrorismo é fragilizar o enfrentamento da criminalidade organizada. A banalização de diferentes dinâmicas criminais sob um único rótulo é o “mais do mesmo”, é ignorar os contextos que produzem esse tipo de criminalidade e os seus efeitos sociais e políticos.
Segundo o histórico do crime organizado na região, ele evoluiu de grupos locais para redes transnacionais que operam sem fronteiras, integrando-se a diferentes mercados e instituições. Já não estamos falando apenas de traficantes de drogas ou de grupos armados isolados. São organizações híbridas, que combinam violência, poder econômico e influência política. Por isso, qualquer estratégia eficaz exige cooperação e coordenação internacional. As redes criminosas não reconhecem fronteiras, mas as nossas políticas públicas ainda são delimitadas por elas. Essa assimetria oferece ao crime uma vantagem estratégica.
A sofisticação do crime organizado não foi acompanhada pela criação de políticas e normas, nacionais ou internacionais, capazes de fortalecer seu enfrentamento. As bases dessa resposta começaram a surgir nos anos 2000, com a Convenção de Palermo, que estabeleceu diretrizes para a cooperação penal e difundiu o conceito de crime organizado como problema público a ser combatido pelos Estados. Nas Américas, observam-se dois principais modelos de enfrentamento: o territorial, que busca retomar áreas dominadas por grupos criminosos por meio de operações militarizadas, e o financeiro, que tenta atingir o núcleo econômico dessas organizações, rastreando, bloqueando e recuperando seus recursos. Historicamente, porém, os governos privilegiaram o primeiro e negligenciaram o segundo – um desequilíbrio com graves consequências.
Em vários países latino-americanos, como no Brasil, as tentativas de “retomar” territórios se deram através da militarização da segurança pública. Iniciativas como as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), no Rio de Janeiro, buscaram restabelecer a presença do Estado pela força. Mas, na prática, essas estratégias apenas conseguiram fragmentar as organizações, que se tornaram mais especializadas, mais conectadas e mais empresariais.
Esse fenômeno expressa a crise das políticas de retomada territorial. Tratam a criminalidade organizada como um problema essencialmente militar, ignorando suas raízes econômicas, sociais e institucionais. Enquanto o Estado se concentrava em controlar o território de forma pontual, o crime organizado se fortalecia no campo financeiro, diversificando suas atividades e consolidando suas redes econômicas. Para além da expansão da atuação criminal, essas organizações ganhavam corpo e identidade de forma paralela ao Estado. Da diversificação das suas atividades criminais, com a prática de múltiplos tipos de crimes (poly-criminality), à constituição de fluxos ilícitos entre grupos criminosos, convergência transacional, conectando atividades distintas, da lavagem de dinheiro ao narcotráfico e à constituição de novas frentes ilícitas, como os crimes ambientais.
E é justamente aí que entraria o segundo cenário de combate: o financeiro, o mais negligenciado. A ausência de políticas eficazes de rastreamento e bloqueio de ativos permitiu que o crime se tornasse mais sofisticado e entrasse em novas áreas econômicas, inclusive em cadeias produtivas lícitas, como combustíveis, bebidas e cigarros. Vemos uma verdadeira financeirização do crime organizado. Um exemplo marcante é o chamado “narcogarimpo”: a extração ilegal de ouro financiada por redes de narcotráfico, especialmente na Amazônia. Esse tipo de atividade revela uma fusão perigosa entre destruição ambiental e economia criminal. O ouro, a madeira e os minérios se tornaram novas moedas do crime transnacional. Ao não atacar o coração financeiro dessas operações, os Estados abriram espaço para que o crime penetrasse em cadeias produtivas lícitas, usando empresas de fachada para lavar dinheiro e legitimar seus lucros. O crime deixou de ser apenas uma questão de violência; tornou-se uma questão de mercado.
Cooperação internacional, novo tipo penal, mais militarização e intervenção externa
Os Estados Unidos desempenharam, historicamente, um papel importante nas políticas de segurança da região, por meio de iniciativas como o Plano Colômbia ou a Iniciativa Mérida, no México. Esses programas trouxeram recursos e inteligência, mas também reforçaram a lógica da militarização. A ideia de atuação conjunta para o enfrentamento ao crime organizado não é novidade, sendo, inclusive, a base do sistema internacional de enfrentamento desse tipo de criminalidade.
Os marcos internacionais que fundam esse conjunto normativo transfronteiriço são, primeiro, a Convenção de Viena de 1988 (Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988), que trouxe à tona o problema do financiamento da criminalidade organizada por meio da lavagem de capitais; e, segundo, a Convenção de Palermo (Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional), já mencionada anteriormente. A partir desse conjunto normativo, houve a disseminação do conceito de crime organizado e das bases procedimentais para a formação de mecanismos de cooperação penal internacional. Dessa forma, passa-se de um modelo bilateral para a ideia de constituição de redes e forças-tarefa entre países e organizações internacionais.
No fim das contas, essa é uma questão de segurança pública, mas também de governança, legitimidade e democracia. A capacidade dos nossos Estados de enfrentar o crime organizado definirá não apenas a segurança das Américas, mas o futuro da convivência democrática em todo o continente.
Contudo, na esteira oposta ao que propomos como solução, observa-se uma mudança nada sutil no combate ao avanço do crime organizado nas Américas: uso de linguagem similar ao combate a grupos terroristas, inclusive classificando-os como narcoterroristas, aumento da militarização e do uso político da retórica do combate à violência com a mão forte do Estado. A incursão da administração Trump em águas caribenhas e o ataque a botes venezuelanos fazem parte deste novo cenário.
Desde a campanha eleitoral, Donald Trump prometeu expulsar do solo americano e acabar com grupos como o M13, de El Salvador, e o Tren de Aragua, da Venezuela. A promessa começou a ser paga em março deste ano, poucas semanas depois do início do seu segundo mandato, quando a administração deportou dezenas de venezuelanos para El Salvador sem informações claras sobre quem seriam as pessoas e se todas estavam de fato envolvidas com alguma facção. Meses depois, em setembro, o alvo passou a ser barcos nas águas do Caribe que supostamente estariam carregando drogas. A estratégia adotada pela administração Trump pode agradar a sua base de apoiadores que votaram nele também pela promessa de acabar com a crise do fentanil no país e “expulsar” imigrantes indocumentados. Contudo, não há evidência de que o consumo de drogas ilícitas no país tenha caído devido aos ataques aos barcos. Mesmo assim, o país parece estar disposto a usar táticas de controle territorial nos mares caribenhos e, eventualmente, no próprio continente. Se o objetivo é de fato acabar com o narcotráfico ou depor o governo Maduro, analistas ainda não sabem, mas já existe uma consequência direta dessas ações.
Mesmo antes da operação da polícia do Rio nos Complexos do Alemão e da Penha, no dia 28 de outubro, políticos da extrema direita no Brasil alertavam autoridades para a possibilidade de os EUA enviarem um porta-aviões ao Rio. Após a operação, que causou repercussão mundial, a direita e a extrema direita na região ganharam a oportunidade de importar a mesma linguagem para o Cone Sul, com a Argentina e o Paraguai declarando o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital como grupos narcoterroristas. Líderes da região que são alinhados com o trumpismo ganharam uma retórica e uma promessa de campanha para o próximo ciclo eleitoral que tem grandes chances de alterar o cenário político regional. Se isso acontecer, a política de segurança baseada em evidências e que prioriza a inteligência financeira, a integridade institucional e a prevenção social ficará para a próxima. A cooperação entre os Estados Unidos e a América Latina pode fazer a diferença, não sob a forma de intervenção, mas de parceria. Um esforço conjunto baseado em confiança, transparência e objetivos comuns.

