Perícia em evidência 15/01/2025

Uso de veneno como meio letal marca festas de fim de ano: perícias são sempre determinantes nas apurações

Invisíveis aos olhos e muitas vezes indetectáveis pelo paladar ou pelo olfato, os venenos continuam a se constituir em um desafio para investigações e perícias. Sem tecnologia aplicada, crimes cometidos dessa forma podem passar impunes.

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal

O emprego de venenos como meio para se alcançar a morte de vítimas em homicídios premeditados nunca foi novidade. Historicamente, os séculos XIX e XX estão repletos de casos de envenenamento homicidas (além da casuística suicida, também frequente até os dias atuais). Com o passar do tempo, a tecnologia passou a “detectar” de forma mais eficaz as diferentes substâncias empregadas como venenos. A ciência da toxicologia forense trouxe luz a essa busca na resolução de casos que, muitas vezes, passavam despercebidos. Até mesmo Napoleão Bonaparte pode ter sido uma vítima de envenenamento (suspeita-se de arsênico). Uma famosa escritora policial, nossa saudosa Agatha Christie, “matava” muitos de seus personagens dessa mesma forma, e com a mesma substância que teria matado o imperador francês. Outro dado interessante: muitos homicidas em série já empregaram esse método cruel.

Em nosso Código Penal o emprego de veneno é considerado uma qualificadora para a pena nos casos de homicídio, prevista no artigo 121, parágrafo 2º, inciso III:

Homicídio qualificado

  • 2º Se o homicídio é cometido:

III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum.” Grifo nosso.

O final do ano de 2024 foi profícuo em produzir manchetes relativas ao tema. Foram dois casos com enredos que têm muito em comum: tramas envolvendo famílias, motivos aparentemente fúteis, intrigas, ingestão de venenos em alimentos, prisões e muito trabalho pericial.

O primeiro aconteceu no Rio Grande do Sul, na cidade de Torres, no litoral norte do estado. No dia 23 de dezembro, numa confraternização familiar, um bolo envenenado com arsênio foi servido e consumido. O evento resultou na morte de três familiares e na internação de outras três pessoas, incluindo a própria mulher que preparou a sobremesa. Morreram as irmãs Neuza Denize Silva dos Anjos, de 65 anos, e Maida Berenice Flores da Silva, de 59. A filha de Neuza, Tatiana Denize Silva dos Anjos, de 47, também faleceu e outras três pessoas foram hospitalizadas, inclusive uma criança, que não corre risco de morte. A suspeita pelas mortes é a irmã de Neuza e de Maida, Zeli Terezinha Silva do Anjos, de 61, pessoa que levou o bolo para a confraternização em família e responsável pelo preparo do alimento. Uma das hipóteses para a motivação, segundo divulgado, seria uma desavença familiar de mais de 20 anos entre a suspeita, Deise, e sua sogra, Zeli dos Anjos. A presença da substância considerada veneno, o arsênio, foi detectada nos exames de sangue, urina e no conteúdo estomacal das vítimas. O veneno também foi localizado em exames periciais em amostras de farinha utilizada pela suspeita, e teria sido adquirido pela internet e recebido pelos correios. Para enriquecer ainda mais o já elaborado enredo deste caso, a polícia desconfiou de uma morte ocorrida em família em setembro de 2024. O sogro de Deise, cuja morte fora tratada como sendo consequência de uma intoxicação alimentar, teve seu corpo exumado e a perícia descobriu que a causa da morte foi o consumo de arsênio em doses elevadíssimas. Até agora a suspeita pode responder por quatro homicídios triplamente qualificados, além de três tentativas de homicídio.

O segundo caso aconteceu na cidade de Parnaíba, munícipio do Piauí, localizado a 345 km da capital Teresina. No dia 1º de janeiro de 2025, após um almoço, nove pessoas de uma mesma família passaram mal e foram encaminhadas ao hospital. Destas, quatro foram a óbito, três foram socorridas e já deixaram o hospital, entre as quais o próprio suspeito do crime; uma criança segue internada. Segundo informações da polícia, Francisco de Assis Pereira da Costa é o principal suspeito de envenenar a família de sua esposa. As vítimas fatais são: Manoel Leandro da Silva, de 18 anos (enteado de Francisco de Assis); Igno Davi da Silva, de 1 ano e 8 meses (filho de Francisca Maria); Lauane da Silva, de 3 anos (filha de Francisca Maria e irmã de Igno Davi) e Francisca Maria da Silva, de 32 anos (mãe de Lauane e Igno Davi e irmã de Manoel. O laudo pericial divulgado pelo Instituto de Medicina Legal (IML) confirmou que a substância responsável pelas mortes foi o terbufós, um veneno altamente tóxico, utilizado como inseticida, que foi encontrado no baião de dois consumido pela família. O terbufós é um agrotóxico de uso restrito, autorizado apenas para aplicações agrícolas e sua comercialização é permitida somente para produtores rurais devidamente cadastrados e treinados para seu manuseio seguro. Apesar das restrições, há registros de comercialização ilegal da substância no Brasil, com a venda irregular na forma do chamado “chumbinho“, segundo a Anvisa, um veneno clandestino utilizado como raticida. A venda e o uso do “chumbinho” são proibidos e configuram crime, devido aos graves riscos à saúde pública. Até aqui a polícia considera como uma provável motivação o relacionamento conturbado do padrasto com os enteados e particularmente um sentimento de ódio contra uma das vítimas, Francisca Maria.

Não bastassem tantos fatos graves, o caso de Parnaíba acabou por revelar uma provável injustiça: uma mulher, Lucélia Maria Gonçalves, presa há cinco meses, acusada de matar dois irmãos de 7 e 8 anos, pode ser inocente. Uma perícia realizada somente agora nos cajus que teriam sido comidos pelos meninos, nos quais a polícia acreditava estar o veneno usado pela acusada, que era vizinha da família deles, demonstrou que não havia presença de chumbinho (ou de terbufós) nas frutas. Francisca Maria, a enteada de Francisco que morreu no envenenamento da família, é a mãe dos irmãos mortos há 5 meses. Agora, com a investigação reaberta, as suspeitas pelas mortes dos dois meninos também recaem sobre Francisco. A reviravolta fez com que o Ministério Público pedisse a revogação da prisão de Lucélia, que sempre negou o crime e chegou a ter a casa incendiada por populares.

Para ilustrar de forma resumida os efeitos dos dois venenos empregados nos casos relatados, trazemos:

O arsênio (As) é um elemento químico, considerado um metal pesado e o seu formato em veneno, chamado de arsênico, é amorfo e inodoro, constituindo-se de um pó branco ou levemente acinzentado, de difícil percepção pela vítima. Tem capacidade de se conectar com materiais biológicos como o rim, o fígado e a queratina, presente em unhas e cabelos. Os sintomas de intoxicação incluem vômitos, dores abdominais e diarreia, podendo levar à morte.

Já o terbufós é um produto químico altamente tóxico, usado em pesticidas e na composição do chumbinho. Pertence à classe dos organofosforados; quando consumido por seres humanos, ataca o sistema nervoso central e a comunicação entre músculos, causa tremores, crises convulsivas, falta de ar e cólicas. Os efeitos aparecem pouco tempo depois da exposição à substância e podem deixar sequelas neurológicas e levar a óbito.

Invisíveis aos olhos e muitas vezes indetectáveis pelo paladar ou pelo olfato, os venenos continuam a se constituir em um desafio para investigações e perícias. Sem tecnologia aplicada, crimes cometidos dessa forma podem passar impunes!

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