Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022

Uma década e mais de meio milhão de vítimas da violência sexual

O dado que historicamente mais choca quando analisamos os registros de estupro e estupro de vulnerável no Brasil é a idade das vítimas, pois, desde que dispomos de dados nacionais sobre o fenômeno, crianças e adolescentes representam a maioria das vítimas

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Samira Bueno*

Doutora em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Isabela Sobral

Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Coordenadora do Núcleo de Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Marina Bohnenberger

Mestranda em Antropologia Social (USP) e Consultora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Amanda Lagreca

Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Juliana Martins

Psicóloga, doutora pelo Instituto de Psicologia da USP e Coordenadora Institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Iara Sennes

Graduanda em Administração Pública pela FGV-SP e em Ciências Sociais pela USP e estagiária do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Thais Carvalho

Graduanda em Ciências Sociais na USP e estagiária do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Talita Nascimento

Graduada em Gestão de Políticas Públicas pela EACH/USP e pesquisadora no Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ao longo da última década (2012 a 2021), 583.156 pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulnerável no Brasil, segundo os registros policiais. Apenas no último ano, 66.020 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável foram registrados no Brasil, taxa de 30,9 por 100 mil e crescimento de 4,2% em relação ao ano anterior. Esses dados correspondem ao total de vítimas que denunciaram o caso em uma delegacia de polícia e, portanto, a subnotificação é significativa.

Segundo a última edição do Boletim Vitimização Criminal, produzida pelo Bureau of Justice Statistics do Departamento de Justiça dos EUA, o percentual de crimes de estupro e outras formas de violência sexual reportados às polícias americanas caiu entre 2019 e 2020, passando de 33,9% para 22,9%. Ou seja, mesmo nos EUA, 8 em cada 10 vítimas de violência sexual com idade igual ou superior a 12 anos não notificaram a polícia sobre a violência sofrida. Seja no Brasil ou nos Estados Unidos, os motivos pelos quais as vítimas não denunciam as agressões sofridas às autoridades policiais são diversos, passando da dificuldade de compreensão do próprio fenômeno enquanto crime, medo de retaliação do autor, constrangimento e até receio da possível revitimização que possa ocorrer ao realizar a denúncia.

No Brasil, os números monitorados pelo FBSP indicam que a maioria das vítimas é vulnerável, o que, segundo a legislação, inclui crianças menores de 14 anos e/ou pessoas adultas incapazes de consentir, o que torna sua mensuração ainda mais difícil. Ainda assim, se assumirmos que no Brasil o percentual de crimes de estupro reportados às polícias foi similar ao mensurado nos EUA, teríamos cerca de 288.297 vítimas de estupro apenas no ano passado, na evidência da urgência que o tema exige.

Cabe destacar, portanto, que nos casos de gravidez decorrente de estupro, a vítima tem direito a interrupção da gestação conforme previsto em lei (Bianchini, Bazzo, Chakian, 2022)5 , ainda que casos recentes de crianças grávidas após estupro indiquem um ativismo judiciário e do Executivo tentando se sobrepor ao previsto no art. 128 do Código Penal:

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54) Aborto necessário

I – Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro;

II – Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Em relação ao perfil, o padrão segue: mulheres representam 88,2% das vítimas, sendo a maioria em todas as faixas etárias. Já as vítimas do sexo masculino são, majoritariamente, crianças. Sobre o perfil étnico racial, 52,2% das vítimas eram negras, 46,9% brancas, e amarelos e indígenas somaram pouco menos de 1%.

Diferentemente do previsto no imaginário social da população, a violência sexual no Brasil é, na maioria das vezes, um crime perpetrado por algum conhecido da vítima, parente, colega ou mesmo o parceiro íntimo: 8 em cada 10 casos registrados no ano passado foram de autoria de um conhecido, considerando os registros em que esta informação estava disponível. O fato de o autor ser conhecido da vítima dá uma camada a mais de violência e de complexidade ao crime cometido: a denúncia se torna um desafio ainda maior para as vítimas.

O dado que historicamente mais choca quando analisamos os registros de estupro e estupro de vulnerável no Brasil é a idade das vítimas, pois, desde que dispomos de dados nacionais sobre o fenômeno, crianças e adolescentes representam a maioria das vítimas. Em termos de distribuição etária, o grupo que conta o maior percentual é o de 10 a 13 anos, seguido das crianças de 5 a 9 anos.

 

 

A violência sexual contra crianças e adolescentes é definida como qualquer ato entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente que tenha por finalidade estimular sexualmente a criança e/ou adolescente, assim como utilizá-la para obter qualquer tipo de estimulação sexual. Também se define quanto ao envolvimento de crianças e adolescentes que, por serem dependentes e imaturos quanto ao seu desenvolvimento, não têm condições de compreender integralmente as atividades sexuais em que se veem envolvidos e, portanto, são incapazes de dar o consentimento. De modo amplo, a violência sexual inclui a pedofilia, abusos sexuais violentos e o incesto, e são divididos entre intrafamiliar e não familiar.

No Brasil, 9 em cada 10 vítimas de estupro tinham no máximo 29 anos quando sofreram a violência sexual, mas com forte concentração na infância. Se considerarmos as crianças e adolescentes entre 0 e 13 anos, que automaticamente são enquadradas como vulneráveis, temos 61,3% de todas as vítimas, com forte concentração na faixa de 5 a 9 anos, que representa 19,1% das vítimas, e de 10 a 13 anos, que reúne 31,7% dos registros.

A análise por idade simples mostra que os casos se tornam mais frequentes entre crianças de 2 anos de idade (2% de todos os registros), chegam a 4,7% dos registros aos 10 anos, e se mantêm crescentes até as vítimas de 13 anos (11,5%), passando a cair progressivamente a partir daí.

Os dados indicam ainda que a violência sexual no Brasil é, marcadamente, uma violência perpetrada contra crianças e no início da adolescência, e os abusadores são pessoas conhecidas e de confiança das vítimas, uma violência que ocorre no seio familiar e cujos autores são parentes.

Mensurar a prevalência de casos de violência sexual entre crianças é ainda mais desafiador do que entre homens e mulheres adultos. Estudos estimaram em 11,8% a prevalência média mundial de abuso sexual na infância, mas outros estudos encontraram resultados diferentes. Três meta-análises publicadas nos últimos anos, revisando dados de publicações científicas entre 1982 e 2009, sugerem que a prevalência média global de casos de violência sexual na infância é de cerca de 8% entre vítimas do sexo masculino, chegando a 19,7% entre vítimas do sexo feminino.

Estudos como estes indicam que a questão da violência sexual é grave, com consequências que se espalham em outras esferas, causando sofrimento prolongado nas vítimas e custos para toda a sociedade. Este é um tema inadiável para a discussão sobre direitos, saúde e qualidade de vida das pessoas atingidas. Por fim, frente a tanta violência cometida majoritariamente contra crianças, o que esses dados nos mostram é a urgência do direito ampliado ao aborto legal e seguro.

 

 

 

 

 

 

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