Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na segunda-feira, 10, o governo federal completou 100 dias. Tradicionalmente a imprensa concede uma trégua aos governos durante o período de formação de equipes e nomeação de assessores. Ao final desse período, os principais veículos de comunicação começam a cobrar e avaliar as iniciativas governamentais.
Obviamente não é possível cobrar resultados das políticas governamentais num período tão curto. Afinal de contas, não houve tempo suficiente para implantar políticas ou aprovar novas leis. Entretanto, é possível verificar qual será a agenda política, suas prioridades e os objetivos do novo governo.
No caso da segurança pública, o ano começou agitado. Logo no dia 8 de janeiro, o presidente Lula e o Ministro Flávio Dino tiveram que lidar com a invasão do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal por golpistas que contestavam o resultado das eleições. A invasão foi a mais grave ameaça à democracia verificada desde a transição política de 1985.
A reação do governo foi rápida, de forma a garantir o funcionamento das instituições e mostrar que não houve quebra da ordem institucional. Ao invés de decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem, o governo federal decretou intervenção no Distrito Federal, afastou o governador e nomeou um interventor para comandar a segurança pública da capital. O emprego do Exército para garantir a lei e a ordem seria uma medida arriscada, pois havia sérias desconfianças de que alguns militares estariam envolvidos nas invasões das sedes dos três poderes.
Passados três meses, as responsabilidades sobre os acontecimentos ainda estão sendo apuradas pela Polícia Federal. Mas podemos afirmar que a reação do governo federal foi rápida e acertada. Seus efeitos, entretanto, parecem ser muito mais duradouros, pois afetaram a agenda política do governo. Desde janeiro, o Ministério da Justiça e Segurança Pública tem priorizado a investigação dos responsáveis por financiar, incentivar e organizar as invasões. O MJSP também passou a destacar a necessidade de mudança na legislação que rege o funcionamento das plataformas de mídias sociais. A regulação das mídias sociais é tema polêmico que exige aprovação de leis em um Congresso dividido entre aqueles que apoiam a iniciativa e os que veem a medida como cerceamento da liberdade de expressão.
Outro tema que claramente compõe a agenda de segurança pública do governo federal é a promessa de reverter a política armamentista do governo anterior. Ainda em janeiro, o ministro Flávio Dino anunciou o recenseamento dos cadastros dos caçadores, atiradores e colecionadores. Também foram revogadas algumas portarias que flexibilizavam a venda e o porte de armas. Apesar dos esforços, não será fácil retirar as armas colocadas em circulação nos últimos quatro anos. Pois muitas medidas necessitam de aprovação do Congresso, na qual a presença da bancada armamentista aumentou significativamente.
A regulação das mídias sociais e o desarmamento da população são agendas novas que não existiam em 2003, quando Lula tomou posse pela primeira vez. Nesses dois temas, boa parte das iniciativas depende do apoio dos parlamentares.
Nesses 100 dias também pudemos observar o retorno de duas agendas políticas presentes em governos passados: a retomada do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci) e a consolidação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Diferente da regulamentação da mídia e do desarmamento, essas agendas não dependem da aprovação de projetos de lei.
Em março foi anunciado o lançamento do Pronasci II, cujos eixos principais são o combate à violência de gênero; o fomento às políticas de segurança nos territórios mais vulneráveis e com altos indicadores de violência; o combate ao racismo estrutural; o apoio às vítimas da criminalidade e o fomento às políticas de cidadania, com foco no trabalho e ensino formal e profissionalizante para presos e egressos.
O novo programa inova em relação ao anterior ao incluir a violência contra mulheres, o racismo e os presos como eixos prioritários. Resta saber como essas políticas serão implementadas. Pois no passado, grande parte das iniciativas financiadas pelo governo federal teve pouca efetividade, seja por equívoco no diagnóstico, seja pela falta de foco ou pela ausência de indicadores de gestão.
Ao reestruturar a Secretaria Nacional de Segurança Pública, o governo federal sinalizou que pretende retomar a agenda de consolidação do Sistema Único de Segurança Pública criado em 2018. Foram criadas três diretorias específicas para essa finalidade: a Diretoria do Sistema Único de Segurança Pública; a Diretoria de Gestão e Integração de Informações e a Diretoria de Ensino e Pesquisa. Caberá a essas diretorias implantar diversas medidas, como o aperfeiçoamento do Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública, a implantação de um sistema de formação profissional, a redefinição das competências dos municípios, estados e União.
Algumas dessas medidas dependem de portarias e decretos governamentais, outras precisam ser aprovadas na forma de leis. Em todos os casos, será necessária grande capacidade de formulação e planejamento. O problema é que a atual estrutura da SENASP foi significativamente reduzida.
Se já é possível verificar algumas agendas prioritárias, também podemos constatar algumas ausências. Nesses primeiros 100 dias, não ficou claro se o governo federal irá priorizar a reforma nas Polícias Militares, cuja nova Lei Orgânica já foi aprovada na Câmara dos Deputados e atualmente se encontra no Senado para apreciação. Também não está nítido qual será a política para valorização dos policiais. Lembrando que os policiais são um dos segmentos que apresentam mais resistência ao novo governo.
Para finalizar, é importante lembrar que as medidas anunciadas nos 100 primeiros dias não terão necessariamente efeitos práticos. Por outro lado, elas carregam grande poder simbólico ao apontar a nova orientação política. Foi o que aconteceu no início do governo Bolsonaro. Em fevereiro de 2019, o então ministro da Justiça Sérgio Moro apresentou seu pacote anticrime, que previa medidas tais como a prisão em segunda instância, a excludente de ilicitudes para policiais e a criação do instituto de plea bargain. Das 14 medidas que compunham o pacote de Sérgio Moro, 11 foram rejeitadas pelos parlamentares que, contrariando a vontade do ex-ministro, aprovaram a criação do juiz de garantias.