Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No início de março de 2023, o Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) solicitou à Corregedoria da Polícia Militar do Distrito Federal que investigasse sete casos em que policiais militares possivelmente foram obrigados a participar de eventos religiosos. O episódio é uma sequência de ações após o recebimento de denúncia sobre o comando de uma unidade policial militar determinar uma formatura geral em uma igreja evangélica. Segundo o MPDFT, os elementos apurados até o momento apontam indícios da suposta prática dos crimes de peculato; prevaricação; inobservância da lei, regulamento ou instrução; aplicação ilegal de verba ou dinheiro; abuso de confiança ou boa-fé; patrocínio indébito e usurpação de função, todos do Código Penal Militar, além da prática de improbidade administrativa prevista na Lei nº 8.429/92, que será apurada.
Além dos episódios no Distrito Federal, há notícias de fatos semelhantes em outras Unidades da Federação. Em São Paulo, por exemplo, houve reuniões semelhantes com entregas de livros religiosos e informativos de grupos religiosos com ações orientadas a profissionais de segurança pública.
Quanto a esses fatos, cabem algumas considerações iniciais sobre o contexto interno da instituição Polícia Militar e as condições de trabalho como proponente das relações religiosas para os trabalhadores policiais militares. Nas tradições policiais militares, herdadas do Exército Brasileiro, as formaturas militares são espaços de comunicações comuns. Em algumas unidades militares são mensais, em outras, anuais; noutras, ainda, são realizadas quando há mudanças de comando, entre outras situações. Algumas são realizadas em pé, em ordem unida, chegando a durar mais de uma hora. Dessa forma, a solicitação de espaços que comportem centenas de pessoas sentadas é comum, pois a maioria dos quarteis e comandos regionais não tem auditórios, por “força da tradição”.
Há uma outra tradição, decorrente da “herança militar”: a Capitania Militar como o espaço capilar de assistência e para mitigar as consequências das doenças mentais do trabalho. Na PMDF, por exemplo, a Capelania Militar exerce atividades de assistência religiosa que contemplam o desenvolvimento de ações para a prevenção ao suicídio e à dependência química, entre outros problemas. A ausência de políticas de saúde mental contínuas fundamentadas em dados científicos abre caminho para que a oferta exclusiva, a título de solução, sejam as atividades religiosas.
Outro ponto importante a ser destacado é que o “modelo de policial ideal” construído tem uma sociabilidade determinada e característica de uma instituição total: é um policial 24 horas por dia, em todos os espaços e em todas as situações. As igrejas, mesmo com características de instituições totais, permitem mais um espaço de sociabilidade com outra identidade e papel social – a de pastor/fiel – tão forte quanto a outra identidade, de policial. Essa mescla policial/pastor e policial/fiel permite ter uma outra comunidade além da comunidade laboral. Não deixa de ser uma “válvula de escape” para outras relações, para outras sociabilidades, para outros espaços. Pela doutrina e interpretação sagrada proposta aos policiais militares, o “perdão automático” pelos erros no trabalho, sem julgamento, permitindo o recomeço diário, é a única “solução possível” para uma profissão na qual não há parâmetros objetivos legitimados pela sociedade civil.
Da mesma forma, a incipiente fundamentação científica na Segurança Pública ocasiona um vácuo na racionalização científica das ações, das operações e das políticas de segurança que orientariam as subjetividades, permitindo espaço para outras explicações e motivações para a realização de ações, operações e políticas do bem contra o mal, tradicionalmente construídas.
Nesse sentido, a Capelania Militar representa as “disputas” entre as relações tradicionais e científicas, mas também simboliza as disputas similares que ocorrem no Estado Brasileiro. No início, havia somente a Capelania Católica; posteriormente houve a “divisão de espaço”, com a concepção da Capelania Evangélica. Os moldes e ligação com as Igrejas continuam, pois os candidatos devem ser legitimados e autorizados pelas Igrejas de origem. Dessa maneira, os sacerdotes selecionados são aqueles que as Igrejas desejam, de forma similar à tradição do Exército Brasileiro. Relação naturalizada, assim como a frase no preâmbulo da Constituição de 1988, “Sob a Proteção de Deus” e a frase “Deus Seja Louvado”, nas cédulas de dinheiro; e os crucifixos no Congresso Nacional e no STF. É um Estado laico com um viés religioso naturalizado; em algumas instituições, de forma discreta; em outras, não.
Como comentado anteriormente, as condições de trabalho fomentam uma aproximação da tropa com as religiões presentes nas Capelanias. A presença nas formaturas não “converte” os policiais em “ovelhas”, mas pode “arrebanhar” as ovelhas da tropa já convertidas anteriormente para determinada instituição. O Programa Universal nas Forças Policiais, por exemplo, da Igreja Universal, ao disponibilizar os espaços para formatura e para momentos de reflexões, convida fiéis e pastores policiais como membros permanentes da instituição. A mudança está justamente nas motivações, podendo ser um recrutamento para a Igreja e desta como uma ponte para um projeto político-partidário.
Dessa forma, “Combater o bom combate” e colocar “a espada da Justiça na cabeça do inimigo” (expressões religiosas comumente usadas por agentes de segurança) será uma luta do bem contra o mal em que a interpretação dessas tipificações será de um determinado grupo religioso, com as armas do Estado, para a manutenção ou mudança das relações de disputa dos poderes (políticos, jurídicos, econômicos, sociais e culturais) pilares da democracia.
Portanto, as relações que acontecem nos e para os quartéis são semelhantes às relações que acontecem fora dos muros. Havia a expectativa da construção de um Estado laico. Todavia, o processo iniciado de racionalização (ou burocratização) está cedendo ao processo que torna o Estado novamente religioso, com possibilidades, entre outras, de um Estado neopentecostal fundamentalista. O processo de disputas e mudanças de atores religiosos no Estado é nítido e as instituições de segurança pública também são espaços de conflito que têm como pano de fundo, além das disputas pelo capital político e econômico, a disputa pela construção da “motivação” e todas as consequências da disputa entre a tradição conservadora e a racionalidade científica. A aderência da tropa ao processo de arrebanhar as ovelhas se dá por múltiplas causas, desde as condições de trabalho às relações extramuros, entre outras. Mas o controle dessas diferentes subjetividades na atividade policial passa, também, pela construção e adoção do arcabouço científico da atividade, das ações, das operações e das políticas de segurança pública.