Múltiplas Vozes 20/09/2023

Trabalho, invisibilidade e agência: a atuação das mulheres nos 30 anos do Primeiro Comando da Capital

As funções e tarefas exercidas por mulheres nas dinâmicas criminais do PCC, dentro e fora das prisões, embora sejam comumente classificadas como “invisíveis”, possibilitam a reprodução da vida social seja em atividades de rotina, seja em contextos considerados ilegais e criminosos

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Fabíola Perez Corrêa

Jornalista, doutoranda e mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC

Mayara de Souza Gomes

Doutoranda e mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC

Rosângela Teixeira

Socióloga, doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC e mestra pela Unesp

A articulação, formação e reprodução de facções como o Primeiro Comando da Capital, o PCC, ocorreu em todo o país diante do trabalho, cuidado, esforço e protagonismo exercidos por mulheres. No curso dos 30 anos da facção, que nasceu em agosto de 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, no anexo conhecido como “Piranhão”, mulheres visitavam companheiros, desempenhavam atividades de cuidado, como o preparo de alimentação a ser levada aos presídios, e davam suporte à “caminhada” dos irmãos que cumpriam pena no sistema prisional. Historicamente, mulheres que visitam unidades prisionais mobilizam esforços e se articulam junto a instituições para denunciar frequentes violações de direitos nas prisões brasileiras.

No contexto prisional paulista, a criação e a expansão dos elementos que caracterizam o PCC, como o estatuto, os procederes e os batismos, produziram formas de socialização que impactaram diferentes gerações dentro e fora dos muros das prisões. Filhas e filhos de homens batizados pelo Comando, crianças, adolescentes e adultos moradores de bairros em que o PCC está presente conhecem o “certo” e o “errado” no “mundo do crime” desde cedo. Não raro, famílias inteiras incorporam atividades ilícitas em suas rotinas à medida que passam pela experiência do aprisionamento. Há casos em que moradores de determinadas regiões de São Paulo passam a participar de atividades ilícitas do tráfico de drogas, gerenciadas por integrantes da facção, para complementar a renda mensal.

Apesar da vasta influência da facção no dia a dia de uma parcela da população, trata-se ainda de uma incidência, sobretudo, masculina. Em outras palavras, a despeito da ampliação da gama de atividades do PCC e do impacto que a facção possui sobre alguns territórios, mulheres e outros grupos, como a população LGBTQIA+, não possuem a mesma relevância na hierarquia de poder do Comando. Uma das principais atividades que marcam a história da facção, o batismo, é, na maior parte das vezes, limitado e pensado para homens. Somente nos últimos dez anos, com o crescimento do número de mulheres presas, o Comando passou a convidar mulheres para o batismo, com o intuito de organizar o cotidiano, as relações e as regulações das unidades prisionais.

No que diz respeito aos atributos necessários para que uma mulher possa ser convidada para ingressar nos quadros da facção como irmãs são, normalmente, citadas a disposição para o cometimento de crimes, a ausência de temor sobre ações criminosas e a necessidade da “caminhada no mundo do crime”, ou seja, uma trajetória de feitos, o que leva à respeitabilidade entre os pares, bem como conduta ilibada e honesta em relação aos fundamentos da facção. Também é necessário ter capacidade para dialogar com a população, a direção, os diretores de disciplina, agentes prisionais, entre outros atores (GONÇALVES, 2021). As jovens que atuam nas atividades do tráfico de drogas, distantes dos muros das prisões, ressaltam que “é muito difícil para uma mulher entrar para o mundo do crime”. Desde adolescentes, reproduzem o argumento discriminatório de que mulheres “precisam” construir um longo e exitoso percurso criminal.

Apesar de as mulheres terem passado a ser oficialmente batizadas pelo Comando na última década, o procedimento ainda é direcionado principalmente aos homens. Como consequência, são eles que, na maioria das vezes, integram a cúpula central do Comando e contribuem para a manutenção dos regramentos conservadores, machistas e sexistas que, além de regular a atuação no mundo do crime, também estabelecem interdições sobre a sexualidade de quem pode ou não ser aceito na facção. A população LGBTQIA+ – as “sapatões”, pessoas transgênero, homossexuais – não podem, por exemplo, ser batizadas (GONÇALVES, 20201).

Nas biqueiras, controladas pela facção, meninas lésbicas relatam sofrer impedimentos para ascender na hierarquia do tráfico porque  “o Comando não permite” (CORRÊA, 2021). Nas dinâmicas de tráfico de drogas em São Paulo, sustentadas, sobretudo, por meninas e mulheres e o PCC, a reprodução dos papéis fixos socialmente atribuídos a homens e mulheres pode ser claramente observada. Elas são expostas a situações de maior risco e submetidas a julgamentos morais por amigos, colegas, superiores e agentes de segurança. Além disso, são destinadas a funções secundárias e de âmbito doméstico, como limpeza, organização e cuidados. Em suas vidas privadas, duplas jornadas também são perceptíveis. Embora meninas e mulheres estejam desafiando a divisão sexual do trabalho também nas atividades do tráfico de drogas, é notável que os papéis de gênero ainda as colocam frente às opressões e limitações (CORRÊA, 2021).

Essas mulheres têm suas trajetórias invisibilizadas e, por vezes, reduzidas às histórias de homens, irmãos, membros e fundadores do Primeiro Comando da Capital. As funções e tarefas exercidas por mulheres nas dinâmicas criminais do PCC, dentro e fora das prisões, embora sejam comumente classificadas como “invisíveis”, possibilitam a reprodução da vida social seja em atividades de rotina, seja em contextos considerados ilegais e criminosos. Com isso, pensar acerca do trabalho desempenhado e das funções e espaços ocupados por mulheres vinculadas ao PCC permite refletir sobre o crescimento e a expansão do PCC nas últimas três décadas, mas também questionar processos que invisibilizam mulheres dentro do mundo do crime.

A imprensa tem também, historicamente, considerado as mulheres que se relacionam com o PCC e suas dinâmicas como mera extensão de seus companheiros e familiares. A maior parte da literatura e das pesquisas produzidas sobre a facção têm dado ênfase aos papéis desempenhados por homens. Os relatos históricos acerca do Massacre do Carandiru, episódio que contribuiu para a criação do PCC, em 1993, são majoritariamente masculinos. As narrativas acerca da disciplina severa que vigorava na unidade, somada às violações de direitos à população da unidade, também são quase que em sua totalidade masculinas. A função e os papéis desempenhados por mulheres nesse contexto ficaram relegados a segunda ordem.

Mais adiante, durante as diferentes fases do PCC dentro e fora dos muros prisionais, as mulheres aparecem como coadjuvantes, exercendo papéis ligados ao estereótipo social, e de uma perspectiva de relação com familiares. Tais interpretações reduzem as mulheres a um papel de menor relevância, ignorando o protagonismo e a agência (BARCINSKI, 2007; LIMA, 2015; RIOS, 2022).

Esse cenário reafirma que, mesmo em contextos criminais, a reprodução da vida social pode ser compreendida pelas desigualdades de gênero. Na análise da filósofa italiana Silvia Federici (2019), o trabalho doméstico não remunerado é apontado como aquele que mantém o mundo em constante movimento. Nessa lógica, a formação de um tipo de abnegação e as funções relacionadas ao cuidado passam a ser fundamentais para a reprodução da vida social. A mesma lógica se reproduz no chamado “mundo do crime”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCINSKI, Mariana. Centralidade de gênero no processo de construção da identidade de mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas.  Ciência e saúde coletiva, v. 14, n. 5,  p.1.843 -1.853, 2007.

CORRÊA, Fabíola Perez. Queria trampar na loja, tem como? As relações e percepções de meninas que cumpriram medidas de internação com as dinâmicas do tráfico de drogas em São Paulo. Mestrado em Ciências umanas e Sociais. Universidade Federal do ABC, Santo André, 2021.

FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas. São Paulo. Boitempo, 2019.

GONCALVES, Rosangela Teixeira. Irmãs, cunhadas e guerreiras: O encarceramento de mulheres em São Paulo e as dinâmicas do Primeiro Comando da Capital (PCC). 402 f. Doutorado em Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal do ABC, Santo André, 2021.

LIMA, Raquel da Cruz. Mulheres e tráfico de drogas: uma sentença tripla. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC. 2015. Disponível em: http://ittc.org.br/mulheres-e-trafico-de-drogas-umasentenca- tripla-parte-i/

RIOS, Thaysa Ferreira. “Melhor ter uma mulher na boca do que 10 fuzil”. A construção social da traficante entre trabalhadoras e trabalhadeiras em favelas da região metropolitana do Rio. (Dissertação de mestrado). Programa de Pós Graduação em Justiça e Segurança da Universidade Federal Fluminense. 2022.

As reflexões aqui propostas partem de análises acadêmicas das autoras e não têm como objetivo criminalizar mulheres ou buscar equivalências sobre as ações empreendidas por homens associados ou não às facções, como o PCC. Procuramos apresentar novos pontos de vista a partir das multidinâmicas e múltiplos atores sociais envolvidos na expansão e consolidação do PCC como uma das facções mais expressivas do contexto nacional.

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