Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na semana da efeméride que assinala a morte de Zumbi dos Palmares, uma postura crítica, que desloque a consciência negra dos limites da colonização e da escravização, nos leva para reflexões que ampliam nossas narrativas para a afirmação da igualdade. Considerando a educação como um vetor que permite o trânsito pelas estruturas sociais, minha proposta é falar sobre acessos, permanências e resistências.
Sobre as barreiras que o espaço acadêmico teima em erigir, quando se trata do reconhecimento intelectual de pessoas negras, bell hooks, em seu inspirador “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade”, narra, entre outros momentos da sua trajetória, a experiência pessoal na pós-graduação, ainda no início dos anos de 1980.
Ao ingressar em uma disciplina sobre teoria feminista, logo que teve contato com os textos que leria ao longo do curso – todos de autoria de mulheres e homens brancos, com apenas um escrito por um homem negro – questionou se não haveria algum material de ou sobre mulheres negras. O questionamento da ausência lhe rendeu tamanha rejeição pelos demais alunos que a continuidade no curso se tornou bastante difícil.
No entanto, o que poderia se tornar uma vulnerabilidade acabou servindo de alimento para o questionamento das estruturas racistas. Levando em conta a dimensão subjetiva da luta política, bell hooks nos legou uma consistente produção teórica que valoriza, entre outros aspectos, a produção em comunidade.
Por aqui, em terras brasileiras, o acesso à universidade não segue caminho muito diferente. Sim, o acesso está franqueado pela via de processos seletivos. Mas é evidente que o racismo opera nos não ditos, na aparente igualdade de condições e oportunidades.
Em uma seleção para a pós-graduação, neste ano de 2024, em uma das mais prestigiadas universidades do país, uma história chama a atenção. Olhando de perto, as marcas da desigualdade já estão ali. Edital publicado, cronograma de provas e a pressuposição de que todos candidatos estão em igualdade de disputa. Ocorre que as provas são realizadas de maneira remota, ficando a cargo do interessado prover os meios para realizar a avaliação – é cada um por si.
Não é permitida qualquer interrupção, há que se ter internet disponível, câmara habilitada, sob pena de desclassificação. Com os meios que tinha, a protagonista desta história resistiu ao que, sem a lente racial, poderia parecer apenas uma sucessão de eventos de má sorte. O plano “A” era realizar a prova no trabalho, com internet rápida, possibilidade de estar isolada em um ambiente, com câmera disponível. Para isso, era só se programar para sair bem cedo de casa… pois, morando nas franjas de uma grande metrópole, dificilmente conseguiria chegar sem atraso, se perdesse o horário do transporte.
No entanto, naquele dia, houve uma instabilidade da internet no trabalho, o que a fez reorganizar a rotina doméstica para assegurar um cômodo em sua residência, em que as exigências da seleção pudessem ser atendidas. Como divide o quarto com outros adultos, sendo que um deles é uma pessoa idosa, descartou a possibilidade de desalojar os demais, pois a prova seria logo pela manhã. A outra opção era levar a sua escrivaninha para o quarto de seus pais – isso também não seria possível, já que exigiria uma manobra equivalente a uma pequena mudança…enfim, a solução foi realizar a prova usando, como mesa de apoio, a tábua de passar roupa, pela altura, pela facilidade de mobilidade e evidentemente, pelo desejo de criar as condições que não estavam favoráveis.
Se não estivermos com olhos atentos, uma vez mais isso vai servir de combustível para o suco da meritocracia, separando os que conseguem passar pelo estreito funil que separa o sucesso do fracasso acadêmico. Se estivermos abertos a questionar o quanto as estruturas estão permeáveis à inclusão racial, veremos aí a tradução prática do que é o racismo estrutural.
Inclusive, vale o que não é só um parênteses: assistimos esses dias ao insulto racista e também classista, divulgado na imprensa e ocorrido em ambiente universitário de elite. Ser cotista e ser pobre foram as inaceitáveis ofensas proferidas. Importa destacar – o episódio envolveu acadêmicos do curso de direito. Portanto, não só o acesso, mas também a permanência – e aqui estou com foco na trajetória estudantil no ensino superior – precisa ser cuidada.
E por que falar disso em um espaço como esta coluna, voltada para as discussões que atravessam a segurança pública?
Há os contornos normativos que, dentro do Estado Democrático de Direito, conferem as balizas para esse campo. Contudo, sempre é necessário lembrar que pessoas – aquelas mesmas que foram barradas, as que são continuamente revistadas, as que resistem e usam suas tábuas de passar, mas também as que proferiram insultos racistas, as que se isentaram de responsabilizar esses mesmos insultos, seguirão convivendo e construindo (ou não) políticas públicas de segurança. O que hoje é um estudante, logo mais será o gestor público, o operador do direito, o profissional da segurança pública.
Tantas são as arestas a reparar na segurança pública, que por vezes vamos deixando de lado isso que parece acessório, porém que vai forjando a atuação dos que terão a caneta acessível. Consentir com a perpetuação do racismo na formação dos agentes que atuarão nessa área é franquear, ativamente, a continuidade da desigualdade.
Falando de resistências, a tábua de passar deu muita sorte à nossa protagonista. Aprovada, ela agora aguarda o início de uma trajetória de possibilidades na pós-graduação. No entanto, essa não é para ser uma história de uma supermulher. Pelo contrário. É mais um alerta para que o racismo não seja naturalizado e para que nos acostumemos a conviver e reconhecer intelectuais negros e negras nos espaços de poder.