A cor da questão 08/05/2024

Sobre filhinhos de papai e bandidos bons

Para enfrentarmos a seletividade penal, precisamos falar de racismo

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Mãe. Independentemente da pessoa que carregue consigo essa palavra, ela nos remete a um estado de extrema potência. A função materna, indiscutivelmente, seja pela sua ausência, seja pela sua presença, nos atravessa enquanto humanidade. Pois bem. No entanto, onde é que essa formulação dialoga com a segurança pública?

Foquemos na forte presença. Em um país de mães solo e de famílias monoparentais e matriarcais, é expressivo o protagonismo das mães nas visitas às unidades prisionais, nos serviços de assistência jurídica, nos fóruns, nos plantões de delegacias e, sim, nos IMLs.

Dificilmente, essas mesmas mães – em sua maioria, mulheres negras – alcançam os recursos que o sistema jurídico dispõe para a defesa dos seus direitos, bem como os dos seus filhos. Tampouco contam com a condescendência do sistema de segurança pública – aqui, muito pelo contrário, lutam para serem reconhecidas como titulares de direitos e, não raras vezes, frente aos corpos já desfalecidos de seus filhos, honram a memória desses mesmos, para que não sejam lembrados como bandidos (bons).

Nos últimos meses, pudemos ver e constatar uma trajetória singular de uma mãe, que também exerceu sua função materna. Daniela Cristina de Medeiros Andrade, mãe de Fernando Sastre de Andrade Filho, chegou à cena do crime e cumpriu seu papel – pôde proteger e cuidar do seu filho. Pelo que sabemos pelas notas públicas do caso, conversou  com os policiais no local da ocorrência, ficou ao lado de seu filho, “combinou” de levá-lo ao hospital, já que ele tinha um ferimento na boca. Transtornada com a repercussão, acabou por tomar um medicamento para aplacar a angústia. Com isso, esqueceu, no carro, o celular com diversas chamadas que a procuravam para dar conta do seu paradeiro e do seu filho. Optou por não ir ao hospital, já que não tinha sequer condições de dirigir um veículo. Depois de 38 horas, com a família refeita do “susto”, seu filho, que fugiu do local dos fatos, com a sua ajuda, mesmo com uma vítima fatal, reaparece para dar sua versão do caso e poder livremente retomar sua rotina.

Três juízes depois, Fernando, filho de Daniela,  empresário, motorista do Porsche, que dirigia a 156 km por hora, que matou um homem e deixou outro gravemente ferido, em 31/03/2024, teve sua prisão preventiva decretada por desembargador do TJ/SP, mais de um mês após o crime, em 03/05/2024. Algumas horas antes, deu entrevista a veículo de capilaridade nacional.

Foi só em 06/05/2024 que Fernando finalmente se apresentou para o cumprimento do mandado de prisão. Não sem antes seu advogado declarar que seu cliente não poderia ir para um “presídio normal”. Sua defesa já aguarda o  julgamento de habeas corpus, impetrado no dia de sua prisão e que entrou na pauta para o dia seguinte.

É como tem que ser, dirão uns, levando em conta que se trata de réu preso. É a expressão da seletividade penal – é o que defendo aqui. E, para enfrentarmos estruturalmente esse estado de coisas, precisamos, entre outros pontos, falar de racismo.

O devido processo legal é assegurado constitucionalmente. Daí derivam a igualdade e a imparcialidade no julgamento, para todos os que se encontram perante os olhos do Judiciário, materializadas na garantia da defesa técnica.

Não é de se lamentar que, na prática, nem todos tenham esse direito efetivado. É motivo de exigir tratamento isonômico e corrigir as inaceitáveis disparidades que se perpetuam no sistema de justiça.

Ser chamado pelo nome, ter espaço para plenamente exercer o seu direito de defesa, utilizando as previsões legais vigentes e, no limite, ter a presunção de inocência respeitada, é o que se espera de um sistema de justiça. O que vale para o filhinho de papai – e parece que, na verdade, mais próprio seria chamá-lo de filhinho de mamãe – precisa valer para todos os filhos. E isso traz como decorrência a necessária validação de todas as mães, em suas especificidades e em suas singulares maternidades.

Ornaldo da Silva, motorista de aplicativo, foi vítima fatal. Da sua mãe, não sabemos.

Enquanto isso, Feliz Dia das Mães para quem mesmo?

 

 

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