Juliana Brandão
Pesquisadora Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Temos consistentes razões para localizar tanto no tombo do navio, como no balanço do mar – imortalizados na voz de Clementina de Jesus – a resiliência das mulheres negras. Isso porque, mesmo massacradas pela escravização e violentadas pela casa grande, essas mulheres sempre tiveram que buscar meios para navegar em mar revolto, nadando contra a maré e, ainda assim, alcançar terra firme. Aqui a bússola é o instinto de sobrevivência aprendido e passado como herança.
Alertando desde sempre que a situação das mulheres negras passa pela luta para serem consideradas pessoas, o feminismo negro convida para a reflexão que intersecciona gênero e raça. Não é, portanto, sem razão que a força do feminismo negro deixe atônitos todos os que se recusam a reconhecer a falácia da universalização da experiência de viver o feminino.
E isso acaba por deixar espaço para narrativas que insistem em localizar no registro do “deixa disso”, quando, na verdade, estamos frente a um cenário de recrudescimento de todas as formas de violência contra as mulheres. Foi o que a pesquisa Visível e Invisível, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que neste ano chega a sua 5ª edição, revelou ao trazer dados de vitimização, de meninas e mulheres brasileiras, no início de março.
Só no último ano, 5,3 milhões de mulheres sofreram ofensas sexuais. Os parceiros íntimos e ex-parceiros íntimos seguem sendo os principais autores, com a casa sendo o espaço mais apontado como local da violência. Além disso, nove em cada 10 mulheres que sofreram violência no último ano disseram que alguém presenciou o episódio. Uma parcela de 27% dos casos foi testemunhada pelos próprios filhos das vítimas.
Apesar disso, foi noticiada amplamente na imprensa a fala de uma personalidade pública que já ocupou lugar de destaque na cena musical brasileira, e que agora atua como pastora religiosa. Em tom de pregação, ela fez apelo para que vítimas de abusos sexuais perdoassem seus agressores, aí inclusos familiares abusadores. Ironicamente, a outrora compositora do elogio ao amor livre, aquele vivido “sem pecado e sem juízo”, hoje passa por cima das conquistas do campo do direito das mulheres, querendo fazer crer que se trata de tema com assento na religião e na moral dos ditos bons costumes.
Ora, falas nesse sentido apenas reforçam a naturalização e supõem a inevitabilidade da violência contra as mulheres. Deslocam a discussão para o campo da moralidade, defendendo um ideal de família inexistente. Replicam a ideia de que a vítima seria, no fundo, a principal responsável por recompor os laços rotos de um vínculo que, confundido com amor, materializa, na verdade, a fonte da violência. Considerando que o perfil majoritário das vítimas de violência doméstica é composto pelas mulheres negras, a vulnerabilidade dessas mulheres é assim replicada à exaustão, alimentando estereótipos negativos sobre esse grupo.
Os abusos e absurdos em relações de vínculo afetivo já foram cantados por Alcione. A evidência da quebra de confiança, em meio a todos conflitos emocionais que cercam esse cenário, também coloca para a mulher a intolerância a uma relação abusiva.
E como bem nos situa bell hooks, para acabarmos com a opressão sexista, o feminismo convoca todos, homens e mulheres, meninos e meninas para participar da luta revolucionária. Por isso vale aqui ter no horizonte, como enunciou Chico César, ao dizer que sabe como pisar no coração de uma mulher, o reconhecimento das inúmeras formas de violência, que não se reduzem ao ataque à integridade física.
Não há pecado algum em denunciar a violência contra a mulher. Pelo contrário. Estamos frente a um crime que precisa ser endereçado ao juízo competente, para que a responsabilização dos autores se dê dentro dos parâmetros previstos no Estado Democrático de Direito. Além disso, ganhamos todas e todos com as formulações do feminismo negro e com as referências culturais negras. Oxalá que o motivo de espanto não seja a potência e densidade teórica dessa produção intelectual negra. Mas sim a ignorância de conhecê-la.