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Segurança Pública e Democracia: Decifra-me ou te Devoro

A grande questão que se coloca é a baixa adesão de policiais de vários níveis hierárquicos e gerações ao valores democráticos e constitucionais, e a adesão significativa ao canto da sereia de uma perspectiva autoritária

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS

Fernanda Bestetti de Vasconcellos

Socióloga, Coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS

A história dos mecanismos institucionais de controle social e administração de conflitos no Brasil pode ser contada como a história da imposição violenta de uma ordem social, política e econômica desigual e excludente. Desde a consolidação do estado nacional, que este ano completa 200 anos de independência, diversos foram os episódios em que as forças militares e policiais foram utilizadas para a supressão de conflitos, revoltas e manifestações populares de descontentamento.

Regimes autoritários, como o Estado Novo e a Ditadura Militar, foram caracterizados pelo maior aparelhamento especialmente da investigação criminal, tradicionalmente baseada em confissões de acusados e na palavra de informantes da polícia, com a utilização da tortura em delegacias de polícia contra as classes populares e os opositores do regime. Mas, mesmo em períodos de maior abertura política, os padrões de atuação violenta e discricionariedade sem controle teimam em permanecer, e se relacionam com a existência de zonas de sombra onde atuam esquadrões da morte ou milícias privadas, produzindo padrões elevados de letalidade, medo e desconfiança, e comprometendo a legitimidade social das polícias.

Com a redemocratização dos anos 80, o desafio de democratização do funcionamento das polícias foi colocado como uma questão chave para os novos governadores eleitos durante aquela década, antes mesmo da promulgação da Constituição de 88, como Leonel Brizola no Rio de Janeiro e Franco Montoro em São Paulo. A partir de 88, se não pudemos contar com um texto constitucional mais transformador em relação às estruturas institucionais das polícias, ao menos passamos a ter mais claramente estabelecidos os direitos e garantias fundamentais, que deveriam balizar o funcionamento das instituições de justiça e segurança no país.

Ao longo das décadas de 90 e 2000, diversas iniciativas foram tomadas pelo governo federal no sentido de assumir maiores responsabilidades na coordenação e no financiamento de ações para formar, equipar e melhor estruturar as policiais federal e estaduais, além de fomentar iniciativas de cooperação entre os diversos entes federativos, incluindo os municípios e as instituições de justiça e segurança.

No entanto, problemas relacionados com a violência policial, a corrupção, e a reprodução da desigualdade social como desigualdade de tratamento pelas instituições não foram resolvidos, e no atual momento passaram inclusive a ser estimulados ou minimizados pelo governo federal, o primeiro a assumir em confronto explícito com os ideais democráticos da Carta de 88. O resultado não são apenas as altas taxas de letalidade policial, mas também altas taxas de suicídio dentro das corporações, problemas de saúde  mental e de violência doméstica, entre outros.

A grande questão que se coloca, e que merece a construção de uma agenda de pesquisa e de intervenção no campo, é a baixa adesão de policiais de vários níveis hierárquicos e gerações ao valores democráticos e constitucionais, e a adesão significativa ao canto da sereia de uma perspectiva autoritária, que ao mesmo tempo inaugura um novo período e se relaciona com a longa duração de um padrão de funcionamento do Estado brasileiro no campo da segurança pública, tradicionalmente inquisitorial e elitista, voltado para a defesa de interesses particularistas e corporativos mais do que para a garantia de uma segurança pública baseada em critérios universalistas, democráticos e legalmente legitimados.

Pretendemos, em uma série de artigos publicados a partir deste mês no Fonte Segura, propor aos leitores uma reflexão sobre esses temas, para tentar responder à esfinge da nossa jovem democracia: decifra-me ou te devoro. Consideramos que as pistas para a resolução do mistério já foram lançadas por uma rica produção do campo dos estudos sociológicos, políticos e antropológicos da violência e da administração de conflitos no Brasil.

Conceitos-chave dessa produção, como os de ética policial, acumulação social da violência, violência socialmente implantada, legitimidade da atuação policial/judicial, (não) Estado de Direito, segurança cidadã, masculinidade violenta, precisam ser valorizados e acionados para a compreensão de uma realidade complexa e multifacetada, e de processos sociais em que as mudanças são frequentemente neutralizadas ou bloqueadas por atores e estruturas institucionais que sustentam privilégios e critérios desiguais de tratamento, característicos de sociedades pré-modernas, e que hoje se confundem com as características de uma nova ordem social dita pós-moderna.

Como perguntava Caetano Veloso em Podres Poderes (1984), estaremos fadados a sempre confirmar a incompetência da América Católica, que sempre precisará de ridículos tiranos? E cada paisano e cada capataz, com sua burrice fará jorrar sangue demais, nos pantanais, nas cidades, caatingas e nos gerais? Será possível escrever uma outra história? Talvez, desde que possamos retomar o fio da meada de uma ideia de democracia como sendo não apenas o regime em que é possível escolher os governantes, mas também em que há um horizonte de reconhecimento de cada um como cidadão portador de direitos. A pergunta que lançamos a partir deste artigo é: o que a polícia tem a ver com isso?

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