Guaracy Mingardi
Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
De repente o governador eleito de São Paulo apresentou uma solução infalível para acabar com a Cracolândia: transferir a sede administrativa do governo paulista para a Praça Princesa Isabel, no local onde agora funciona um terminal de ônibus. Isso teria como consequência, segundo ele, o desmantelamento das hordas de usuários e traficantes que circulam diariamente no local.
Num discurso meio que genérico, ele mencionou a volta do comércio, dos empregos e a diminuição da degradação do centro da cidade. A ideia não é ruim, poderia ajudar a revitalizar a região, mas temos um porém. O grosso do comercio, há mais de cem anos, sempre esteve distante daquela região. Na verdade, a principal área comercial da cidade era do outro lado do Vale do Anhangabaú, a mais de 2 quilômetros dali. O único comercio importante situado bem próximo da futura sede do governo é o de eletroeletrônicos, situado na rua Santa Efigênia e arredores. Aliás situada exatamente onde nasceu a Cracolândia, com a qual dividia o comércio local. Durante o dia se vendiam eletrônicos; à noite, crack e cocaína.
O núcleo da Cracolândia não é mais ali, se situa a uns cinco ou seis quarteirões de distância. Mas ainda restam, como na maioria das ruas e vielas locais, uns vestígios do tráfico. Atualmente a Praça Princesa Isabel é um dos pontos mais frequentados pelos noias, mas não é seu núcleo, existem vários outros pontos na região. Todo o espaço entre as praças República/Arouche, até a Rua Santa Efigênia, são locais onde se vende e compra crack, a cocaína que vem do Heliópolis (lipa), além da cocaína mais barata que procede da Favela do Moinho, a única no centro da cidade. E as calçadas e praças desses mais de trinta quarteirões são a moradia de muitos nóias e outros moradores de rua mais tradicionais.
Na mesma fala o futuro governador acerta no genérico, mas erra no particular. Segundo ele só é possível combater as “cracolândias” com várias medidas interligadas: assistência social para lidar com o usuário, polícia para sufocar o fluxo das drogas, medidas de urbanização, etc. Concordo em gênero, número e grau, mas se ele conhecesse as regiões de que fala, saberia que tem um grande complexo para ajudar os moradores de rua na Praça da República, o CAPS AD IV Redenção na avenida Duque de Caxias, que acolhe usuários de drogas, além de várias equipes de assistentes sociais que estão sempre em contato com os nóias que perambulam pela região.
Outro senão na proposta é que vários órgãos governamentais se mudaram para o centro velho da capital há mais de dez anos. Sedes do Metrô e da Secretaria de Segurança, por exemplo. O que não impediu que aquela área, antes o principal ponto de vendas da cidade de São Paulo, decaísse. Atualmente, andando pelos calçadões da rua Direita, podem-se avistar muitas portas de ferro baixadas, mostrando a fuga do comércio. Assim como nas ruas próximas à Santa Efigênia, a atividade diurna mascara o tráfico e a pobreza durante o dia, mas eles voltam a imperar à noite. E o principal motivo é a falta de moradores, que fazem com que o bairro fique vazio após as 19 horas. Normalmente residentes fixos é que servem como barômetro da situação de segurança, limpeza e aglomerações suspeitas, através de suas queixas à polícia ou à prefeitura.
Aliás, a vantagem do local escolhido para nova sede do governo, região da Luz, tem uma vantagem sobre o centro velho. Tem muito mais moradores, portanto mais vida após o fechamento das lojas. A desvantagem é que o comércio local, com exceção dos inúmeros bares, alguns restaurantes e dos eletrônicos, é muito mais ralo.
A iniciativa, se realmente for posta em prática, pode ajudar a melhorar a situação, mas por si só não resolverá o problema. Lembrando que as sedes da polícia civil e da PM paulistas ficam a menos de um quilômetro de onde começou a Cracolândia. Ou seja, não é a presença de prédios públicos que vai alterar o quadro. E um dos motivos é que, juntos ou espalhados, os usuários das drogas vivendo nas ruas do centro paulistano são muitos. Há vinte anos são empreendidas ações policiais e intervenções urbanas nos trinta quarteirões mencionados. Até agora só serviram para mudar o núcleo da Cracolândia de lá pra cá, além de espalhar os nóias. Vamos esperar essa nova iniciativa, apesar do ceticismo, e torcer para que ajude a melhorar a vida de quem mora, trabalha ou vem ao centro paulista. Lembrando que essa mudança será muito custosa, e, se ficar pela metade, é provável que só piore a situação. Não há nada como construções inacabadas para servir de abrigo para pequenos criminosos.