Mulheres e Segurança Pública 13/03/2024

Repercussões sobre a ampla concorrência para ingresso nos concursos públicos das polícias militares do Brasil

Às mulheres são simbolicamente atribuídos os lugares socialmente aceitáveis para elas, razão pela qual, definitivamente, não se aplica consensualmente o lugar da segurança pública

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Juliana Lemes da Cruz

Doutora em Política Social pela UFF, Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais

O Raio-X das Forças de Segurança Pública no Brasil apresentou, em números, o reflexo da iniquidade de gênero no setor. Conforme os dados, no atual cenário brasileiro, a representatividade feminina alcança em média 12,8% nas polícias militares, 14,5% nos corpos de bombeiros militares, 16,1% nas guardas civis municipais e 27% nas polícias civis.

Quanto às polícias militares, corporações com a menor média de representatividade feminina dentre as instituições consideradas, fatos novos têm mobilizado a opinião pública. No primeiro destaque, o impasse quanto à aprovação da Lei Orgânica das Polícias e Bombeiros Militares, que apresentou artigo que permitia dupla interpretação, fazendo com que a noção de piso de 20% para ingresso das mulheres, noutra ótica, se tornasse teto. Aquele foi um dos artigos vetados pelo chefe do executivo nacional.

Desse desdobramento, o segundo destaque, uma série de contestações acerca da limitação de vagas para ingresso das mulheres nos concursos públicos dos estados, tem sido noticiada. O Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu propostas de autoria da Procuradoria-Geral da República (PGR), no que tange a Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) sobre pelo menos 17 estados da federação, que seguiram de suspensão ou cancelamento de editais de concursos das respectivas PMs. Decisão que influencia o acesso das mulheres da base (execução), ao topo (gestão).

Dentre os estados não envolvidos nesse “pacote” de ações, destaco São Paulo e Amapá, por exemplo. Ambos dispõem de concursos com ampla concorrência há alguns anos.

Apesar disso, as mulheres não ocuparam a maior parte das vagas, como parece ser o temor dos candidatos e candidatas de estados onde vigoravam as cotas. O Amapá, apesar da ampla concorrência, considera em edital as diferenças biológicas entre homens e mulheres, diferenciando a etapa de teste físico dos concursos. Por lá, 27,9% de mulheres ocupam as vagas de PM. Já em São Paulo, são 14,6%, atrás do Acre (14,9%), Espírito Santo (15%), Bahia (15,8%), Alagoas (16,7%), Rio Grande do Sul (20,9%) e Roraima (21,2%). Os Estados que seguem empatados com o menor percentual feminino nos quadros das respectivas polícias são o Ceará e o Rio Grande do Norte, com apenas 6,1%.

As corporações policiais militares brasileiras, centenárias e bicentenárias, têm sido cada vez mais demandadas a considerar a pluralidade da população, respeitando a diversidade, sob uma perspectiva renovada e inclusiva no campo da segurança pública. Nessas estruturas, formaram-se apenas policiais do sexo masculino até o início da década de 1980, quando foram necessárias adaptações para a incorporação de policiais femininas. Naquele período histórico, os primeiros editais seguiam os padrões daquele tempo, admitindo, por exigência, moças solteiras, de até 25 anos e com o 2º grau completo. Sob uma dinâmica societária que normatiza simbolicamente lugares e comportamentos socialmente aceitáveis para serem cumpridos por homens e mulheres, é perfeitamente compreensível que a reprodução das desigualdades de gênero mantenha força também com apoio das mulheres, mesmo sendo estas as mais afetadas pela limitação de acesso ao concurso público.

Notadamente, em que pese polêmico, trata-se de garantir equidade de oportunidade de ingresso, o que não significa que as vagas serão ocupadas majoritariamente por mulheres, mesmo porque evidências apontam que há relação entre a natureza da atividade requerida pela vaga e o interesse do público feminino.  No caso das polícias civis, por exemplo, o que parece definir o ingresso feminino é a natureza do serviço e não o número de vagas. Segundo o Raio-X, no Brasil a PC é ocupada, em média, por 27% de mulheres, considerados os cargos de delegado, escrivão e investigador/agente. O Rio Grande do Sul dispõe do maior percentual de mulheres, 47%, seguidos por Amapá (35,7%) e Goiás (33,8%). O menor percentual foi registrado no estado de São Paulo, (21,1%).

Há evidências de que a natureza da ocupação condiciona a busca das mulheres por determinadas vagas. Destaque para a diferença percentual entre as carreiras de escrivão e investigador/agente. No Brasil, em média 45,9% dos escrivães são do sexo feminino, cargo que possui natureza principal administrativa ou de assessoria. Por outro lado, dentre os investigadores/agentes, 21,2% são mulheres. Cargo de natureza operacional, que envolve riscos cotidianos associados a operações e o confronto armado.

Isso leva a supor que, mesmo diante da ampla concorrência para ingresso de mulheres nas Forças, há fatores considerados por elas antes da tomada de decisão. O que faz com que, consequentemente, a ampliação da presença de mulheres nessas instituições se apresente pouco expressiva em curto prazo, o que responderia a uma espécie de seleção natural. Afinal, a atividade de segurança pública demanda, de profissionais de ambos os sexos, importantes renúncias associadas às suas vidas pessoais, tornando-se desinteressante para muitas pessoas.

Nesse contexto, se consolidado o cenário de ampla concorrência, a depender do grau de descontentamento dos gestores, há ainda como hipótese o risco de que impere a compreensão de que constitui uma alternativa plausível frear o ingresso das mulheres, dificultando o processo na fase de inclusão via testes físicos ou durante o curso de formação, já que não se tem mais controle sobre o acesso às vagas. O entendimento que produziu eco em desfavor da decisão do STF é de que a medida se mostra prejudicial à atividade-fim.

Ademais, seria um equívoco desconsiderar a importância da força física empregada pelos homens na atividade policial rotineira, assim como negligenciar o risco de encarregar apenas às profissionais femininas a totalidade das atribuições que envolvem a segurança pública.  No contexto histórico e sociocultural brasileiro, mais em algumas regiões e menos em outras, às mulheres são simbolicamente atribuídos os lugares socialmente aceitáveis para elas, razão pela qual, definitivamente, não se aplica consensualmente o lugar da segurança pública.

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